A Gazeta do Middlesex

A história do judeu Melchizedek

26/1/2014

3 Comments

 
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A HISTÓRIA DO JUDEU MELCHIZEDEC

E A PARÁBOLA DO ANEL MÁGICO




Foi Giovanni Boccacio quem, por volta de 1350, primeiro contou no seu Decameron a história do judeu Melchizedek, a qual começa assim:



Nos tempos em que Saladino dominava o Médio Oriente, vivia em Alexandria um rico judeu chamado Melchizedek que tinha a fama de possuir não só uma enorme fortuna mas também uma grande sabedoria .
O Sultão, após uma série de guerras, estava necessitado de dinheiro e resolveu solicitar a Melchizedek um vultuoso empréstimo capaz de equilibrar as suas finanças, e para isso ordenou que ele fosse trazido à sua presença, tendo-lhe então dito:

“Tens a fama de ser um homem sábio e portanto quero saber o que pensas da vontade de Deus. Entre as três religiões, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão qual é afinal a verdadeira ?”

Melchizedek imediatamente sentiu a armadilha, pois a menos que dissesse que era o Islão, coisa que como judeu não podia, Saladino teria razões para se declarar ofendido e exigir melhores condições para o empréstimo que pretendia.

Melchizedek pensou uns instantes e depois falou :

“Saiba que há muitos anos atrás havia um homem muito rico que possuía um anel mágico o qual tinha poderes para fazer com que o seu proprietário fosse amado por Deus e pelos homens. Mas esse homem tinha três filhos, todos merecedores da sua estima, e não querendo beneficiar nenhum em prejuízo dos outros, mandou executar num ourives duas cópias perfeitas, e assim quando morreu todos os seus filhos receberam o seu, e sendo impossivel distinguir qual o verdadeiro, fez com que todos acreditassem que tinham o original.”

“E depois o que aconteceu ? ”- perguntou o Sultão.

“O que aconteceu foi que até hoje foi impossivel descobrir a verdade e os herdeiros desses três filhos continuam a acreditar que possuem o genuíno anel”.

“O mesmo se passa com as três religiões, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Todos os seus seguidores consideram que são os legitimos herdeiros da vontade divina e até hoje não foi possivel encontrar uma resposta sobre o qual tem razão “.

Saladino ouviu em silencio as palavras de Melchizedek e comovido com a sua sabedoria abraçou-o. O empréstimo foi negociado em boa fé e integralmente pago, e os dois ficaram amigos até ao fim da vida.



Mais de quatro séculos mais tarde foi a vez de um filósofo alemão, Gotthold Ephraim Lessing contar a história, alterando o que parecem ser pequenos detalhes, começando por mudar o nome do judeu que passa a chamar-se Nathan, O Sábio, e o local da história que é agora Jerusalém.

O Sultão pede a presença de Nathan e a questão essencial que lhe coloca é a mesma, ou seja, apenas uma das três religiões monoteístas pode ser verdadeira e certamente que Nathan sendo tão sábio não tinha escolhido o Judaísmo por um mero acidente de nascimento, mas sim por ter concluído que essa era a única autentica, e ele Saladino queria que Nathan justificasse essa escolha.

Tal como Melchizedek, Nathan fica perplexo e após algum tempo de reflexão conta a mesma história do anel com os poderes mágicos, mas aí faz algumas subtis alterações que começam por salientar que após o anel original ter sido copiado, muitas foram as gerações que se sucederam, todas acreditando que aquele que possuíam era o verdadeiro, e de cada vez que a história era contada, mais reforçada era a fé naquilo que se ouvia de geração em geração.

Mas outra diferença fundamental aparece quando Lessing põe a certa altura Nathan a contar ao Sultão:

“O pai não previu que após a sua morte a discórdia se estableceria entre os seus três filhos, cada um reclamando ser possuídor do autentico anel, seguindo-se o ódio mútuo à discordia , porque por muito que os examinassem não encontravam qualquer diferença entre eles”.


“Mas queres tú dizer que não existem diferenças entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão ? ”- replicou Saladino.

“É verdade”, responde Nathan, “porque as práticas e os ensinamentos podem ser diferentes como toda gente vê, mas estes derivam da fé, do que se acredita, e a fé e aquilo em que se crê são identicos na origem, e ninguém pode provar que uns são melhores do que outros.”

-”E depois ? ”, perguntou Saladino.

“Depois, como o conflito não parasse de aumentar, foi resolvido levar o caso perante um juíz tido como muito sábio, que depois de ouvir e ponderar longamente, declarou que nenhum dos aneis podia ser verdadeiro, uma vez que se o fosse o seu possuídor seria amado por Deus e pelos homens, e a realidade era que nenhum dos irmãos o era, todos apenas se importando consigo próprios. Mas, continuou o juíz, se modificassem os seus comportamentos de acordo com os poderes que o anel mágico supostamente concedia, então talvez daí a uns milénios fosse possivel saber qual o verdadeiro, se nenhum, se apenas um ou se todos.”

E Nathan, tal como Melchizedek, acabou em harmonia com o Sultão.


O que os escritos de Boccacio e Lessing nos pretendem dizer é que apesar das diferenças culturais e históricas entre as grandes religiões monoteístas elas são na essencia iguais, igualdade essa que para aqueles com menor entendimento permanece obscura.

Lessing pertence a uma longa linhagem de pensadores cristãos, muçulmanos e judeus, tais como Averrois, Maimonides, Espinosa, Philo Judaeus de Alexandria, etc, para os quais os textos sagrados foram escritos de uma maneira alegórica própria para serem entendidos por aqueles que não atingiram a maturidade intelectual. Maimonides no seu “Guia para os Perplexos” diz mesmo : dibrah Torah ki'lashon bnei-adam (A torah fala a liguagem dos homens),e o devoto filosofo islamico Al-Farabi admitia a existencia de mais do que uma religião virtuosa ao escrever “... é possivel que nações e cidades virtuosas existam apesar de seguirem religiões diferentes, mas cujo objectivo seja uma e só felicidade...”.

E é esse apelo à tolerancia e compreensão mútua que o judeu Melchizedek nos faz.









3 Comments
Alcina Mila
26/1/2014 05:05:50 pm

O mundo era decerto diferente se houvesse tolerância e compreensão.
As religiões estão na base de tanta discórdia, mas porque outros valores, sempre materiais, se impõem. Como se vê, não interessa se os anéis são falsos ou verdadeiros. O que devia valer era poder ser-se feliz acreditando.

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Fernando Vouga link
30/1/2014 05:43:36 pm

Vá lá contar esta história aos muçulmanos...

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Gloria R
4/2/2014 02:59:52 am

What a great lesson to us all!

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