A INOCÊNCIA PERDIDA
Pela primeira vez na história tinha sido trocada entre a Europa e a América uma mensagem telegráfica, tendo a Rainha Vitória enviado ao Presidente Americano James Buchanan umas breves palavras, tão cheias de significado nessa época como na nossa tiveram as de Neil Armstrong : “...a small step for a man...”
A Rainha saudava o feito em exactamente 98 palavras que levaram dezasseis horas a transmitir :
“A Europa e a América estão unidas pela telegrafia ! Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade! Que este seja mais um laço a ligar as duas nações cuja estima reciproca é fundada em valores comuns...”
Ao que o Presidente Buchanan respondeu dizendo : “ Este é um triunfo glorioso por ser muito mais útil para a humanidade do que todos os conseguidos no campo de batalha. Que o telegrafo do Atlântico, sob a bênção divina, possa ser um laço de perpetua paz e amizade entre nações irmãs, um instrumento destinado pela Divina Providencia para a difusão da religião, da civilização, liberdade e força da lei através do mundo !”
Em 1997, cento e cinquenta anos depois, em Islington no norte de Londres, naquela que ficou conhecida como a Rua da Internet , não muito distante onde solitáriamente vou escrevendo estas linhas, que serão lidas por pessoas que não conheço, que nunca vi e de quem nada sei, era levada a cabo uma experiência destinada a responder à pergunta sobre se a nova tecnologia poderia transformar as relações entre as pessoas ou era tão incapaz de melhorar a natureza humana como tinha sido a telegrafia.
O estudo, promovido pela Microsoft, levou a que se instalassem ligações em 27 casas na esperança de que, estudando os efeitos na vida dos habitantes, se fizesse alguma luz sobre a questão fundamental : Seria a Internet uma força para o Bem, ou pelo contrário iria prejudicar a coesão e os laços sociais? Dito por outras palavras : Teria a Net a possibilidade de vir a ser um novo tipo de telefone com infinitamente maiores potencialidades de poder reforçar as comunicações inter-pessoais, ou seria pelo contrário apenas uma diferente forma de televisão, isolando ainda mais as pessoas em frente aos respectivos ecrãs ?
Os primeiros resultados foram um desapontamento para quem augurava o melhor para a nova tecnologia :
“O uso da Internet parece estar ligado a um pequeno, pequeno mas estatisticamente significativo, aumento da solidão e da depressão...”
Mas passado algum tempo a BBC via razões para optimismo, reportando que naquela rua não havia encontrado provas que as pessoas se tivessem isolado, muito pelo contrario, os e-mails criavam laços entre vizinhos inexistentes antes, e um site criado para debater os problemas locais tinha sido o motor para as pessoas se organizarem contra ou a favor de projectos que poderiam afectar a comunidade.
Mas a unanimidade estava longe de ser alcançada : Em 2000, dois professores de Stanford, Norman Nie e Lutz Erbing publicaram um estudo onde afirmavam que quanto mais tempo as pessoas passavam na Net mais se afastavam do contacto com a família e amigos:
“ O e-mail é um meio de manter o contacto, mas não se pode tomar um café ou uma bebida com alguém por essa via, e a Internet é uma poderosa força que reduz a nossa vida social muito mais do que o automóvel e a televisão tinham feito antes.”
Mas a perplexidade continuava e a indecisão sobre se a Net era um bem ou um mal não parecia ter fim:
Numa experiência realizada em Toronto, muito semelhante à de Islington , numa zona que passou a ser conhecida como “Netville”, onde apenas um terço dos moradores não estava conectado, os resultados foram notáveis pois permitiram comparar com rigor os comportamentos de ambos os grupos: Descobriu-se que em média os residentes que usavam a Net conheciam o triplo dos nomes dos vizinhos que aqueles que não a usavam, e que também se visitavam mutuamente muito mais vezes. Estes resultados foram apresentados como a prova final que a net resultava afinal num reforço das ligações entre as pessoas.
Porém hoje, tantos anos passados, as opiniões continuam divididas e com tantas noticias sobre hacking, roubos de identidade, cyberbullying, acesso a contas bancárias supostamente invioláveis,etc , mesmo os mais indefectíveis defensores da era digital vão admitindo que talvez a criatura tenha escapado ao controle do criador.
Em média cada habitante do Reino Unido tem 26 contas de Internet, desde as bancárias às de e-mail, sites sociais, on line shopping, Skype, PayPal, etc. Isto criou a necessidade de saber é o que fazer no caso da morte do titular, e rapidamente surgiu a Cirrus Legacy, que foi apenas a primeira empresa de testamentos on-line. Esta companhia disponibilizava-se para ser a executora testamentaria dos seus clientes, garantindo que a sua herança digital teria o destino determinado nas respectivas últimas vontades, providenciando o encerramento de todo o tipo de contas, o apagar de fotos, emails, documentos, enfim tudo o que o testador pretendesse que não lhe sobrevivesse e, mais importante ainda , garantir a transmissão ao herdeiro designado de informação que de outro modo seria perdida e lembremos-nos, por exemplo, de passwords em contas bancárias off-shore.
Mas é entre os jovens que os efeitos são mais fortes e as preocupações mais fundas, magnificamente expressas no filme “InRealLife” da realizadora de cinema Beeban Kidron, (Bridget Jones-The edge of reason,Cinderella, e outros) .
Descrevendo o que foi que a levou a pesquisar o impacto que a era digital tinha na juventude, contou ela :
“Há cerca de um ano ao entrar casualmente na minha cozinha, encontrei meia dúzia de jovens em completo silencio, absortos nos seus pequenos ecrans, e foi então que realizei que havia meses que não via um teenager que não tivesse na mão um smartphone ou um computador, e nesse instante decidi realizar um filme sobre o assunto e foi assim que, depois de um ano de pesquisa intensa, nasceu o “ InRealLife”. Essa tentativa de conhecer uma realidade até então para mim desconhecida fez-me passar horas deprimentes em quartos de rapazes enquanto viam pornografia on-line, para depois, ao fazer-lhes perguntas constatar que essas práticas teriam provavelmente deixado marcas indeléveis na maneira como no futuro iriam viver a sua sexualidade; praticamente todas as raparigas com quem falei relataram a enorme pressão social a que estão sujeitas, a obrigação de estarem permanentemente contactáveis, o medo do “unfriendling” (1), o significado de estarem todo o tempo a serem observadas por desconhecidos, da ansiedade constante sobre a imagem que projectam...”
“...os aparelhos que os nossos jovens usam vêm de fábrica com todas funções áudio e visuais ligadas. Cada nova app, website, tweet, caixa de correio, não é mais do que um novo modo de intrusão, e cada intrusão está cinicamente concebida para exigir uma resposta, e cada resposta cria o apetite para uma nova intrusão. Pedir a um jovem que ponha de lado a XBox ou que desligue o computador ou o smartphone, é o mesmo que pedir a um alcoólico que pare de beber.
Por detrás de uma aparência inocente está um mecanismo comercial: Cada inter-acção significa informação , que por sua vez vale uma fortuna. As nossas crianças, que são manipuladas para se tornarem consumidores, admitem em cada vez maior numero que não se sentem capazes de controlar o uso que fazem da Internet. Tudo aquilo que um adolescente faz, diz ou vê, por muito pouco e breve que seja, contribui para a criação de um “eu” virtual que um dia poderá ter terríveis consequências para o seu “eu” real. Quantos de nós poderiam ter sido capazes de conservar as nossas relações e reputações intactas se todas as nossas transgressões, erros e loucuras enquanto jovens, fossem eternamente exibidas na Net ? Quantos de nós aceitariam que todos estes factos da nossa vida pudessem ser comprados e vendidos vezes sem conta durante a nossa existência ? “
“ As companhias que constituem o núcleo da net valem biliões mas, mas ao contrario dos outros ramos do comercio onde se é obrigado a garantir que os produtos vendidos são seguros para o consumidor, estas estão isentas dessa obrigação. Porque razão se permite que os nossos telefonemas, as nossas compras, os nossos apetites sexuais, os segredos de todos nós, sejam livremente transaccionados, por muito óbvio que seja o mal que isso causa?”
“É por termos permitido que certas organizações controlem livremente o mais intimo dos nossos jovens antes que a sua personalidade esteja completamente formada, que estes idolatram simples objectos em vez de adquirirem experiência, que não sabem distinguir entre contacto e comunicação, do que é apenas imagem e não intimidade, do que é rápido mas não responsável.
Para que um adolescente se torne adulto são necessários modelos de comportamento, paciência e prática, e poder simultaneamente experimentar o que é estar só e a vida em grupo. Mas as mãos que nós devíamos segurar estão ocupadas por smartphones.”
(1)- “unfriendling”- Ser-se excluído de participar num grupo de “amigos” virtuais.