A Gazeta do Middlesex

A Morte de Ivan Ilyich

7/2/2014

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                                    A MORTE DE IVAN ILYICH

“Muitos homens vão à pesca toda a vida

sem perceberem que não é peixe o

que realmente precisam”

Henry David Thoreau



Após a públicação de “Guerra e Paz” em 1869 e de Anna Karenina em 1877, Leon Tolstoy estava no auge da sua fama, uma figura patriarcal reverenciada, vivendo rodeado pelos seus treze filhos na casa ancestral dos Condes de Tolstoy, em Yasnaya Polyana, a cerca de 200 quilometros de Moscovo, quando uma inesperada crise espiritual o transformou completamente.

Segundo relata começou a experimentar “momentos de perplexidade”, com sensação de a vida ter parado. E se esses instantes passavam, era para logo voltarem com a incessante pergunta : “A vida que tenho que significa e para onde me leva ?”. Nem mesmo a sua fama literária lhe parecia digna de registo : “Eu dizia a mim próprio: Muito bem, serei mais famoso que Gogol ou Pushkin ou Shakespeare ou Moliére, mais do que todos os escritores do mundo, e depois o que é que isso vale ? E não conseguia encontrar resposta “.

“ Tudo aquilo que eram os alicerces que me tinham sustentado tinham ruído; Debaixo dos meus pés nada ficou” (in: Confessions-cap IV)

E continuou :

“A minha vida chegou a um impasse. Eu podia respirar, comer, beber e dormir, não podia deixar de fazer essas coisas; mas em mim não havia vida, porque não existiam objectivos cuja realização achasse valer a pena. Se uma fada aparecesse disposta a satisfazer-me qualquer desejo eu não saberia o que pedir...nem sequer o de conhecer a verdade, porque já suspeitava no que ela consistia: A verdade era que a vida não tinha qualquer sentido” .(ibidem).

“As pessoas diziam-me : Não penses no significado da vida! Limita-te a viver sómente! Mas eu não conseguia, porque já o tinha feito durante demasiado tempo...”

Mas Tolstoy no meio do seu tormento e quando tudo parecia perdido, tem um último sobresalto e salva-se. Mas para ele tudo muda e a vida passada deixa de ter valor:

“Olhando para trás vejo agora claramente que a minha fé- a minha única fé – tudo aquilo que, áparte os instintos animais, me fazia mover – era o desejo de me aperfeiçoar. Mas qual era o objectivo dessa perfeição eu não o saberia dizer. Por isso tentei aperfeiçoar-me mentalmente- estudei com afinco tudo o que pude ; Tentei aperfeiçoar a minha determinação, establecendo regras rigidas que tentava seguir ; Tentei aperfeiçoar-me fisicamente, cultivando a força e a agilidade com todo o tipo de exercicios,  fortalecendo a minha resistencia submetendo-me a todo o genero de privações. Tudo isto eu considerava ser útil para chegar à perfeição a qual era no principio óbviamente a perfeição moral, mas que rápidamente foi substituída pelo desejo de ser apenas  perfeição : Não era tornar-me melhor aos meus próprios olhos ou aos de Deus, mas sim aos das pessoas : Ser mais famoso, mais importante e mais rico.” (in Confessions-cap I)

E a rejeição dos valores da Sociedade – ambição, poder, ganancia, lascivia, orgulho- leva-o a procurar uma vida dedicada ao próximo, à simplicidade, à verdade. Transforma grande parte da sua mansão numa escola para crianças pobres e torna-se num crítico da servidão a que estão sujeitos os camponeses russos, o que rápidamente o torna num inimigo do Estado, e a própria Igreja Ortodoxa Russa não se livra da sua condenação pela sua cumplicidade na tirania, o que faz com que seja por ela excomungado.

Mas o principal legado que nos deixa desses tempos é a sua obra “A morte de Ivan Ilyich” :

O personagem principal vive em S. Petersburgo num luxuoso apartamento e é um respeitavel juíz do Supremo Tribunal. Há muito que o amor está ausente do seu casamento e a mulher, Praskovya Golovin, é uma pessoa distante e fria que não está interessada na vida do marido a menos que seja directamente afectada. Para Ivan a filha do casal, Lisa, é uma pessoa estranha, a maior parte do tempo incompreensivel, como dificilmente suportável é o noivo, Fedor Petrishchev.

Amigos são apenas os que podem ajudar na carreira e cujas posições sociais lhe possam trazer algum prestigio. Os frequentes jantares que oferece são ocasiões minuciosamente preparadas onde tudo o que é dito é cuidadosamente pensado e onde não há lugar nem para a sinceridade nem para o calor humano. Como aliás era comum a todos os seus conhecimentos, a principal preocupação de Ivan Ilyich é subir na escala social, e do trabalho o único prazer que retira é a satisfação do seu orgulho, e da sua intensa vida em sociedade para ele o único resultado é a satisfação da sua vaidade.

A Ivan porém inesperadamente surge uma pequena dor no abdomen, que vai crescendo até se tornar insuportável. Chamados os médicos estes não conseguem identificar a origem do mal, e muito menos acertar na cura, e rápidamente se torna evidente que ele não irá viver muito tempo.

Para os colegas e amigos do Tribunal essa perspectiva não é de todo desagradável, e é altura de pensar nas possibilidades que se abrem com a prematura partida de Ivan Ilyich. Para Fyodor Vasilyevitch é uma boa ocasião de ficar com o lugar de Vinnikov, se este for promovido e ocupar o lugar do falecido, o que representa um substancial aumento de vencimento. Já para Pyotr Ivanovitch abre-se a possiblidade de poder transferir o cunhado da provincia para S. Petersburgo.

Praskovya Fedorovna, essa preocupa-se com o quanto ficará de pensão por morte do marido e a filha Lisa rala-se com o efeito que o inevitável período de luto pela morte do pai terá na sua vida social, não falando no adiamento do casamento planeado para daí a uns meses.

O doente entretanto, que jaz na cama entregue ao seu imenso sofrimento, começa a perceber que sacrificou tudo pelas aparências, para impressionar aqueles que afinal não se podem importar menos com ele. Com terrivel realismo entende tarde demais que não era amado por si próprio, mas apenas respeitado pelo seu estatuto de juíz e de rico pai de familia, e que por isso sendo agora um nada no seu leito de morte a nada tinha direito, nem mesmo à compaixão e  carinho que aliviassem a sua agonia.

E assim morre Ivan Ilyish tão só como na realidade viveu, sem nunca ter conhecido o significado do verdadeiro amor.


A epifânia experimentada por Tolstoy no final da sua longa crise fê-lo alterar todas as suas atitudes e a apresentar-nos Ivan Ilyich como estando apenas aparentemente vivo quando na realidade há muito que tinha sofrido uma morte moral, e quando o descreve dentro do seu esquife revê-se a si próprio, pois crê que inelutávelmente aquele teria sido o seu fim se não tivesse mudado.

Este livro vem na tradição cristã de “memento mori”, uma demonstração em como meditar no significado metafísico da morte pode fazer-nos reorientar as nossas prioridades e afastar-nos dos valores mundanos, a ambição, desejo de poder, orgulho,  arrogancia, para podermos experimentar uma vida espiritual verdadeiramente plena, em comunhão com todos os outros.

1 Comment
Alcina Mila
8/2/2014 05:15:16 pm

Foste lembrar-te de Tolstoy e muito bem, para mais uma vez fazermos uma reflecção sobre o significado metafísico da morte. Todos devíamos ser capazes de concluir que o caminho se deve fazer despojados de valores materiais e em verdade e sinceridade. A amizade é algo que penso pode estar aqui incluida.

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