A GAZETA DO MIDDLESEX
A MORTE DE UMA NAÇÃO
A distancia embota o discernimento ou, pelo contrário, aguça os sentidos? Será que os expatriados como eu encaram o que se passa em Portugal com comiseração ou o sofrimento afinal aumenta na medida em que aparentemente nada nos diz respeito? Pelos blogues de colegas de diáspora que vou lendo parece-me que é mais o segundo caso, logo pode-se dizer que a Gazeta não foge à regra.
Nós expatriados somos como espectadores sentados num longínquo teatro imaginário, uns aplaudindo, outros pateando, outros perplexos sem descortinar a trama da peça, que indubitavelmente é do género tragédia, mas nenhuns ficando indiferentes.
Pelo que se vem passando nestes últimos dias julgo que se aproxima o cair do pano e que no fim nenhum dos actores sobreviverá, acabando tudo numa girândola final, num götterdämmerung, num big-bang que assinalará o desaparecimento de uma velha nação com séculos de história.
É altura para um caveat ao leitor desprevenido: O que temo não é obviamente o desaparecimento físico da Nação Portuguesa, mas uma espécie de morte moral e espiritual, o desaparecimento desse animo que em situações muito particulares da História permite a que um povo suba acima das suas realidades quotidianas, das sua vidas rotineiras, e se eleve a um outro patamar em que as suas acções são sentidas como cruciais para a sobrevivência colectiva. Só nesse arrebatamento emocional podem os cidadãos transcender a sua mera existência e ser capazes de esforços e sacrifícios tremendos, mesmo heróicos, levados pela convicção de terem contribuído para uma causa que os transcende e que é a preservação da sua Nação.
Penso poder explicar porque julgo ser a presente situação distinta e muito pior que crises anteriores, que acabaram por ser superadas com maior ou menor dificuldade. Vejo razões para que possa ser possível que aquele elan vital, aquele sopro de vida que sempre se manteve mesmo nas páginas mais negras da vida colectiva, hoje se possa extinguir.
É verdade que Portugal tem um Governo fantoche às ordens de uma potencia estrangeira a quem obedece com canina fidelidade, cumprindo à risca os diktats imperiais que o brutalismo do ocupante decide impor.
Mas nada disto é novo. O jugo francês nunca teve dificuldade em recrutar colaboradores e os espanhóis ainda a tiveram menos. Mas no caso de Junot e outros, o Rei exilado no Brasil era o símbolo da Nação que podia ser ocupada com violência inaudita, mas não subjugada. E mesmo durante os Filipes, Miguel de Vasconcelos teve aquele fim porque os Portugueses nunca deixaram de rilhar os dentes e na primeira oportunidade expulsaram o usurpador.
Portanto canalhas sempre os houve, em todo o lado e épocas, todos prontos para qualquer infâmia.
Quisling, que era como se chamava o líder norueguês pró-nazi, tornou-se no sinónimo da mais vil traição, por se ter prestado a exercer uma brutal tirania sobre o seu povo em nome do exercito alemão que tinha invadido a sua Noruega natal. Como qualquer lacaio, ele quis mascarar a sua reles condição pretendendo fazer crer que tudo o que fazia era pela sua própria volição e para o bem do seu povo . E para que o disfarce fosse completo, também ele afirmou querer “ir mais além” do que lhe era imposto pelo invasor, sendo que para ele esse “mais além” foi a suprema infâmia de colaborar na deportação dos Noruegueses judeus para os campos de extermínio. A resposta que o seu regime fantoche obteve do povo Norueguês foi o mais profundo desprezo, e o Rei Haakon tornou-se no símbolo da inquebrantavel resistência popular ao demonstrar uma indómita coragem que os invasores nunca conseguiram vergar.
Já na França ocupada o cenário foi semelhante: Laval prestou-se também a fazer qualquer trabalho sujo que a Alemanha desejasse, indo ele também “mais além” do que seria estritamente imposto pelas circunstancias, organizando a prisão e deportação dos Franceses judeus para os campos da morte. É verdade que, quer num lado quer noutro, a resistência armada ao invasor nunca esmoreceu, e se muitos foram os colaboradores muitos mais foram os que na clandestinidade lutaram de armas na mão. Em Londres, de Gaulle era a voz da França Livre, voz essa que mesmo nos dias negros de 1940 jamais se calou. E chegado o momento em que os tanques de General Leclerc libertaram Paris, viu-se que tinha bastado um punhado de resolutos que nunca se tinha dado por vencido para que após aquela longa noite que foi a ocupação alemã a honra da França tivesse ressurgido incólume.
Nestes dois exemplos encontramos sustentando o espírito de resistência e mantendo viva a esperança na vitória e num futuro melhor, um forte sentimento de identidade nacional, de pertença a uma comunidade partilhando os mesmos antepassados, história e cultura, com reforço da lealdade individual ao grupo e da coesão social.
Frequentemente, em alturas que exigem grandes sacrifícios, os políticos apelam à unidade, exaltando as “qualidades únicas” do seu povo, lembrando situações anteriores em que foi necessário enfrentar terríveis provações e mesmo morrer pela Nação.
Não é por acaso que nessas circunstancias os apelos ao passado se repetem: A consciência de se partilharem raízes comuns e uma história tão antiga é sentido colectivamente como prova da fibra moral do povo, da sua força, e frequentemente da sua superioridade em relação a outros, os quais não possuindo um passado tão rico não foram tão proeminentes no Mundo.
Essa memória do passado colectivo, cheio de momentos transcendentais, reforça a auto-estima e a convicção de que se outrora se foi capaz de grandes feitos, novamente a Nação se poderá reerguer vencendo os novos desafios.
É por isso que a palavra de ordem actual do Partido Trabalhista Britânico é “One Nation”, significando “Uma Só Nação” ou “Uma Nação Una”, ao que o Partido Conservador respondeu com o slogan, (talvez pouco credível), “We are in this together”, ou seja “Estamos Nisto Juntos”, sendo que o “nisto” seria o enfrentar a presente crise. Aí reside a razão porque nem Laval nem Quisling fizeram apelos ao patriotismo e à unidade dos Franceses e dos Noruegueses: As afinidades ideológicas que tinham com o regime totalitário da Alemanha impunham, pelo contrário, uma submissão a valores contrários aos das respectivas Nações.
Igualmente do regime português não se ouviram apelos à unidade, muito pelo contrario:
O Primeiro-Ministro, tornado arauto e látigo de uma nova ordem económica mundial, fez da divisão e da confrontação entre os diferentes estratos da Sociedade a política do seu Governo. Em lugar do apelo à vontade colectiva para superar as dificuldades, o que se lhe ouviu foi que seria vã qualquer esperança num caminho menos árduo, restando ao povo a resignação de ter de aceitar as consequências de no passado ter falhado moralmente, (vivendo acima das suas possibilidades).
No discurso oficial os velhos eram um fardo, uma “peste grisalha” improdutiva e inútil, que seria necessário eliminar em beneficio dos jovens; os funcionários públicos , mandriões e pouco diligentes, não teriam lugar no futuro; os militares, uma relíquia do passado, estavam tão ultrapassados como ultrapassada estava a ideia da defesa do país, quando num mundo globalizado o verdadeiro valor estava apenas nas unidades de produção existentes em determinado território; os serviços públicos um anacronismo a serem substituídos por empresas privadas, cujo objectivo fosse gerar os maiores lucros possíveis para os respectivos accionistas; os desempregados responsáveis pela sua situação, por falta de vontade em procurar ocupação; a presente crise, útil e desejável, e que dela surgiria após serem cortados os ramos secos, um regime capitalista mais ágil e vigoroso; o sistema de ensino deveria ter como objectivo a educação de uma elite, e que constituiria uma aplicação de recursos sem retorno económico o fornecer às massas um ensino que ultrapassasse o nível básico. E, last but not least, a marcha triunfal do capitalismo não poderia ser detida por aqueles que reclamavam devido aos sacrifícios impostos, necessários para atingir o ridente futuro que esperava a classe dos vencedores, não passando todos eles de “piegas”.
Fez portanto sentido a frase “Que se lixem as eleições” quando se percebe que não se lida com um político “normal”. Para esses ditos “políticos normais”, conservar o poder é o fim ultimo da sua actividade. Dirão os cínicos que o fazem por vaidade e ambição, os próprios porém afirmam que achando-se cada um indubitavelmente o melhor e apresentando as melhores propostas, não lutar pela vitória eleitoral seria afinal anti-patriótico. Mas para aqueles cujo objectivo é a destruição do tecido económico e social de uma Nação que uma vez conseguida, e tornado irreversível o resultado dessa política de terra queimada, as eleições podem-se realmente “lixar”.
Não deixa de ser uma amarga ironia que desaparecidas as ideologias totalitárias que pretendiam criar um “homem novo”, se assista agora ao surgimento de uma outra cujo fim é precisamente dar à luz um “homem velho”: Pobre, ignorante, bisonho, humilde e respeitador dos seus amos, amos esses obscenamente ricos e poderosos.
É ao serviço dessa “nova ordem” que o regime português está, e para que ela triunfe é necessário que nada do passado colectivo subsista, que não fique memória da existência de nada que contribuía para o bem comum e cujo fim não era apenas o lucro.
É por isso também que a privatização da TAP é essencial para o Governo e o preço a pagar indiferente. Como ultimo símbolo nacional, como ultimo traço de união entre os portugueses, não poderá por isso sobreviver.