A Gazeta do Middlesex

A Flauta

31/1/2014

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                                              A FLAUTA




Em 1933 nascia na India aquele a quem foi dado o nome de Amartya, (que significa imortal), pelo seu padrinho o poeta, filósofo e escritor Rabindranath Tagore, (1861-1941), galardoado em 1913 com o prémio Nobel da Literatura.

Amartya Sen, de seu nome completo, viria igualmente a ter uma carreira distinta e seria também vencedor do Nobel, (Economia-1988). Além de economista foi também filósofo, tendo tido como preocupação central da sua vida académica o problema da pobreza , das desigualdades sociais e da justa distribuição da riqueza.

No seu livro “A Ideia de Justiça” ele imaginou com grande simplicidade e clareza uma história cujos protagonistas são três crianças a que chamaremos Maria, António e Joana, como sendo uma maneira de conhecer as escolhas que as diferentes visões da Sociedade nos oferecem,




“Três amigos, Maria, António e Joana brincam juntos com uma flauta. António foi quem a fez, Maria é quem a sabe tocar e a Joana, que é muito pobre, tem nela a única coisa com que pode brincar. Porém as respectivas familias vão partir para destinos distintos e o pequeno grupo será separado. Põe-se portanto a questão : Quem deverá ficar com a flauta ?”




Diz Amartya Sen que não existe nenhum resultado que possa ser reconhecido universalmente como sendo completamente justo, e que a decisão depende do entendimento que cada um tem sobre o que deve ser a Justiça :

A Joana, sendo a mais pobre, teria o apoio incondicional dos Egualitários, enquanto que o António teria do seu lado os Libertários, ficando a Maria a ser defendida pelos Utilitaristas.

E como a Justiça não é um ideal monolítico, mas um conceito pluralista, possuindo várias dimensões, todos têm uma parcela de razão :

Os Libertários argumentam que se António conhecesse as regras que possibilitariam que ele no futuro pudesse vir a ser privado do fruto do seu trabalho, a flauta, então não a teria feito.

Já os Egualitários, aqueles que querem que seja a Joana a beneficiada por ser pobre, acham que cada um deve receber de acordo com as suas necessidades e lembram o que defendia Anton Menger, um dos pioneiros na defesa do Estado Social, ao lembrar que havendo cidadãos mais vulneraveis do que outros, alguns mesmo incapazes de serem auto-suficientes, logo os que produzem não poderiam ficar com a totalidade do produzido, cabendo ao Estado o papel de redistribuidor da riqueza.

E finalmente os Utilitaristas não têm dúvidas de que o que deve prevalecer é a defesa da função social da riqueza e que esta deve pertencer a quem tem mérito, a quem melhor a saiba utilizar. Logo indiscutivelmente a flauta deveria ser para Maria, a única que a sabe tocar, porque senão qual seria a sua utilidade ?

Temos assim que não é possivel condenar à partida nenhuma destas posições que se baseiam em argumentos racionais e que são respectivamente o desejo de realizar o potencial humano (Maria), a eliminação da pobreza (Joana), e o direito de cada um gozar o fruto do seu trabalho (António).

Mas, segundo Amartya Sen, é no entanto necessário establecer prioridades segundo o tipo de Sociedade em que queremos viver e se desejarmos eliminar as injustiças que estão ao nosso alcance. O argumento que usa a impossibilidade de realizar um mundo totalmente justo, de erradicar a fome e a pobreza, não pode justificar a complacencia que leva à perpetuação de injustiças gritantes, como são os lucros obscenos de minorias obtidos à custa da miséria de milhares.

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A história do judeu Melchizedek

26/1/2014

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A HISTÓRIA DO JUDEU MELCHIZEDEC

E A PARÁBOLA DO ANEL MÁGICO




Foi Giovanni Boccacio quem, por volta de 1350, primeiro contou no seu Decameron a história do judeu Melchizedek, a qual começa assim:



Nos tempos em que Saladino dominava o Médio Oriente, vivia em Alexandria um rico judeu chamado Melchizedek que tinha a fama de possuir não só uma enorme fortuna mas também uma grande sabedoria .
O Sultão, após uma série de guerras, estava necessitado de dinheiro e resolveu solicitar a Melchizedek um vultuoso empréstimo capaz de equilibrar as suas finanças, e para isso ordenou que ele fosse trazido à sua presença, tendo-lhe então dito:

“Tens a fama de ser um homem sábio e portanto quero saber o que pensas da vontade de Deus. Entre as três religiões, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão qual é afinal a verdadeira ?”

Melchizedek imediatamente sentiu a armadilha, pois a menos que dissesse que era o Islão, coisa que como judeu não podia, Saladino teria razões para se declarar ofendido e exigir melhores condições para o empréstimo que pretendia.

Melchizedek pensou uns instantes e depois falou :

“Saiba que há muitos anos atrás havia um homem muito rico que possuía um anel mágico o qual tinha poderes para fazer com que o seu proprietário fosse amado por Deus e pelos homens. Mas esse homem tinha três filhos, todos merecedores da sua estima, e não querendo beneficiar nenhum em prejuízo dos outros, mandou executar num ourives duas cópias perfeitas, e assim quando morreu todos os seus filhos receberam o seu, e sendo impossivel distinguir qual o verdadeiro, fez com que todos acreditassem que tinham o original.”

“E depois o que aconteceu ? ”- perguntou o Sultão.

“O que aconteceu foi que até hoje foi impossivel descobrir a verdade e os herdeiros desses três filhos continuam a acreditar que possuem o genuíno anel”.

“O mesmo se passa com as três religiões, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Todos os seus seguidores consideram que são os legitimos herdeiros da vontade divina e até hoje não foi possivel encontrar uma resposta sobre o qual tem razão “.

Saladino ouviu em silencio as palavras de Melchizedek e comovido com a sua sabedoria abraçou-o. O empréstimo foi negociado em boa fé e integralmente pago, e os dois ficaram amigos até ao fim da vida.



Mais de quatro séculos mais tarde foi a vez de um filósofo alemão, Gotthold Ephraim Lessing contar a história, alterando o que parecem ser pequenos detalhes, começando por mudar o nome do judeu que passa a chamar-se Nathan, O Sábio, e o local da história que é agora Jerusalém.

O Sultão pede a presença de Nathan e a questão essencial que lhe coloca é a mesma, ou seja, apenas uma das três religiões monoteístas pode ser verdadeira e certamente que Nathan sendo tão sábio não tinha escolhido o Judaísmo por um mero acidente de nascimento, mas sim por ter concluído que essa era a única autentica, e ele Saladino queria que Nathan justificasse essa escolha.

Tal como Melchizedek, Nathan fica perplexo e após algum tempo de reflexão conta a mesma história do anel com os poderes mágicos, mas aí faz algumas subtis alterações que começam por salientar que após o anel original ter sido copiado, muitas foram as gerações que se sucederam, todas acreditando que aquele que possuíam era o verdadeiro, e de cada vez que a história era contada, mais reforçada era a fé naquilo que se ouvia de geração em geração.

Mas outra diferença fundamental aparece quando Lessing põe a certa altura Nathan a contar ao Sultão:

“O pai não previu que após a sua morte a discórdia se estableceria entre os seus três filhos, cada um reclamando ser possuídor do autentico anel, seguindo-se o ódio mútuo à discordia , porque por muito que os examinassem não encontravam qualquer diferença entre eles”.


“Mas queres tú dizer que não existem diferenças entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão ? ”- replicou Saladino.

“É verdade”, responde Nathan, “porque as práticas e os ensinamentos podem ser diferentes como toda gente vê, mas estes derivam da fé, do que se acredita, e a fé e aquilo em que se crê são identicos na origem, e ninguém pode provar que uns são melhores do que outros.”

-”E depois ? ”, perguntou Saladino.

“Depois, como o conflito não parasse de aumentar, foi resolvido levar o caso perante um juíz tido como muito sábio, que depois de ouvir e ponderar longamente, declarou que nenhum dos aneis podia ser verdadeiro, uma vez que se o fosse o seu possuídor seria amado por Deus e pelos homens, e a realidade era que nenhum dos irmãos o era, todos apenas se importando consigo próprios. Mas, continuou o juíz, se modificassem os seus comportamentos de acordo com os poderes que o anel mágico supostamente concedia, então talvez daí a uns milénios fosse possivel saber qual o verdadeiro, se nenhum, se apenas um ou se todos.”

E Nathan, tal como Melchizedek, acabou em harmonia com o Sultão.


O que os escritos de Boccacio e Lessing nos pretendem dizer é que apesar das diferenças culturais e históricas entre as grandes religiões monoteístas elas são na essencia iguais, igualdade essa que para aqueles com menor entendimento permanece obscura.

Lessing pertence a uma longa linhagem de pensadores cristãos, muçulmanos e judeus, tais como Averrois, Maimonides, Espinosa, Philo Judaeus de Alexandria, etc, para os quais os textos sagrados foram escritos de uma maneira alegórica própria para serem entendidos por aqueles que não atingiram a maturidade intelectual. Maimonides no seu “Guia para os Perplexos” diz mesmo : dibrah Torah ki'lashon bnei-adam (A torah fala a liguagem dos homens),e o devoto filosofo islamico Al-Farabi admitia a existencia de mais do que uma religião virtuosa ao escrever “... é possivel que nações e cidades virtuosas existam apesar de seguirem religiões diferentes, mas cujo objectivo seja uma e só felicidade...”.

E é esse apelo à tolerancia e compreensão mútua que o judeu Melchizedek nos faz.









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 O Animal Politico I

23/1/2014

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                                     O Animal Politico

                                      Uma Anatomia




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Jeremy Paxman é um famoso jornalista , autor de vários livros entre os quais aquele cujo titulo servirá de introdução para uma série de apontamentos sobre a politica britânica, que espero possam vir a ser publicados neste blog.

Paxman, ou Paxo como é popularmente conhecido, faz parte dum grupo de jornalistas tão peculiar a estas ilhas, os quais levam muito a sério o papel que a si próprios atribuíram de serem os defensores da decência na vida pública.

Possuindo todos um faro infalivel, não há esqueleto que não farejem por muito bem trancado que esteja o armário. E quando isso acontece atacam como uma alcateia de lobos e não há afinidades ideológicas ou partidárias que os travem, e os prevaricadores acabam sempre por ser sugeitos à execração pública. Paxo tem mesmo a honra de ter dado origem a uma nova palavra do vocabulário, pois diz-se que alguém foi paxoed quando foi públicamente exposto no pelourinho como autor de alguma quebra de ética.

Para a tarefa Paxman está particularmente bem equipado senhor como é de uma personalidade, por assim dizer, robusta, o que o levou a aguentar até agora incólume 25 anos ininterruptos como apresentador do programa da BBC NewsNight, onde são entrevistados politicos de todas as cores e feitios. Uma dessas entrevistas é aliás ainda hoje recordada com deleite pelos adversários politicos da vitima : Tratava-se de Michael Howard, Barão de Lympne e conselheiro da Raínha, ao tempo também líder do partido conservador e que teve a insensatez de tentar responder com evasivas a uma pergunta, o que fez com que Paxo a repetisse doze vezes seguidas. Não é por acaso que ele tem a alcunha de Rottweiler.

Outro insensato foi nada mais nada menos que o Primeiro-Ministro David Cameron que anunciou impante o programa para este ano das comemorações do centenário do inicio da 1ª Guerra Mundial, (ao custo da bagatela de 54 milhões de libras), o que fez Paxman saltar a terreiro afirmando que só um completo idiota poderia ter a ideia de festejar o inicio de uma guerra onde morreram 750.000 soldados britânicos e onde outros tantos foram feridos e estropiados, o que causou um autentico ataque de nervos aos conservadores sobretudo porque, no intimo pelo menos, é dificil não concordar com ele.

Mas algo de bom resultaria desse longo convivio de Paxman com a classe politica, naquela que foi certamente muitas vezes  uma relação penosa e sofrida, mas que resultou em conhecimentos para poder dissecar o animal politico com um afiado bisturi, usado aliás com aguçada perspicácia pelo Autor.

Pode alegar-se que teve a observação cientifica dos animais da espécie facilitada pelo seu diminuto habitat, que se restringe às camaras do parlamento, aquele pequeno rectangulo à sombra do Big-Ben, onde tudo se passa, palco onde se representa drama e comédia e às vezes farsa também, e onde é levado à cena natural e principalmente Shakespeare . A peça “The Comedy of Errors” é ali muito popular e tem também grande sucesso a “Much Ado About Nothing”. No tempo da Mrs. Thatcher havia um público que pedia regularmente a representação da “The Taming of the Shrew”, mas já a “Julius Ceasar” raramente vai à cena porque causa perturbação na audiencia, sobretudo pela frase que Shakespeare pôs na boca de Marco António, na segunda cena do terceiro acto : Amigos ! Romanos ! O mal que um homem tenha feito sobrevive à sua morte mas o bem, esse é enterrado com os seus ossos !. Há coisas que é melhor não lembrar.

Longe de Westminster, e dos seus holofotes, para os actores não há vida, apenas o imenso vazio do esquecimento, não admirando portanto que quem lá esteja não queira saír, e que sejam muitos os que querem pertencer ao grupo dos 650 felizardos com assento na Camara dos Comuns, cada um representando cerca de 68.000 eleitores o que faria que em Portugal, e mantendo-se a mesma porporção, o colégio eleitoral contasse com perto de 17 milhões de cidadãos.

Mas a questão principal é tentar perceber qual a razão porque a carreira politica é tão ambicionada num país onde quando ela acaba, e acaba sempre fatalmente mal, não há para os derrotados senão amargura e esquecimento. Mas fica para a próxima porque muito há para contar.





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Da Vida Breve III

20/1/2014

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             DA VIDA BREVE

          (de brevitate vitae ad Paulinum)

                      CARTA A PAULINO

                                    III

                   Lucius Annaeus Seneca

                             (4bc-65ad)




(conclusão)




Portanto deves combater a velocidade do tempo com a rapidez com que o usas, com se estivesses a beber sofregamente de uma corrente que sabes que não irá fluir para sempre. O poeta fala-te do dia, deste mesmo dia, que se está a escoar.

Tal como aqueles viajantes que tendo estado entretidos na conversa, lendo ou absortos em profunda meditação, descobrem subitamente que já chegaram ao seu destino sem se aperceberem, assim é esta extremamente rápida jornada da vida que nós, dormindo ou acordados, fazemos sempre ao mesmo ritmo e que chega ao fim para nossa surpresa.

Se quisesse dividir este meu tema em vários capítulos e apresentar provas, não me faltariam argumentos para demonstrar que os inconscientes acham a vida muito curta. Mas como Fabiano costumava dizer, ele que não é um desses filósofos modernos mas sim um dos à moda antiga, devemos atacar as paixões com força bruta e não com a lógica, que as linhas inimigas devem ser quebradas por um forte ataque e não com beliscões, e que os vícios devem ser esmagados e não apenas alfinetados.

A vida é dividida em três períodos: Passado, presente e futuro. Destes, o presente é curto, o futuro duvidoso, e o passado certo. É sobre este último que a Fortuna deixou de ter poder, e é aquele que não pode ser trazido de volta para ser dominado seja por quem for. Mas é esse passado que os perturbados perdem : Porque não têm tempo para o lembrar e mesmo se o fizessem, não lhes seria agradável recordar episódios que os envergonham. E assim não querendo recordar os dias mal gastos, não aceitando reviver os pecados cometidos, os quais à luz do presente são tão óbvios, despidos como agora estão dos encantos dos prazeres momentâneos que na altura proporcionaram, não podem voltar ao passado a menos que tudo que nele acontecido pudesse passar o crivo da sua consciência, aquela que não é possível enganar.

O homem que deve temer a sua memória é aquele que foi ambicioso na sua ganancia, arrogante no seu desprezo, descontrolado nas suas vitórias, traiçoeiro nas suas mentiras, rapace nas suas pilhagens e desperdiçador nos seu gastos. E no entanto é este mesmo passado que é sagrado e imutável, que está para além da acção humana e fora da influencia da Fortuna. Não pode ser alterado ou ser-nos tirado : Pertence-nos, imperturbável e eternamente.

No presente só temos um dia de cada vez, cada um proporcionando um minuto de cada vez. Mas todos os dias do passado virão ao teu chamamento: Podes analisa-los um a um , com tempo, demoradamente, coisa que os perturbados não dispõem. Apenas um espírito em paz e livre de cuidados pode explorar todas as etapas da sua vida: As mentes dos perturbados, como se estivessem amarradas a um tronco, não conseguem voltar-se e olhar para trás. E por isso as suas vidas desaparecem num abismo; É como tentar encher uma vasilha sem fundo, não importa quanta seja a água que nela se deite que ela nenhuma consegue reter, e da mesma maneira não interessa quanto seja o tempo que nos é dado se ele não puder assentar; escapará por entre as fendas e os buracos da mente. O momento presente é muito curto, de tal maneira que muita gente nem dele se dá conta. Porque está sempre em movimento, sempre numa correria, e subitamente assim que chega já passou, não se detendo nem se atrasando, tal como o movimento das estrelas do firmamento que nunca estão no mesmo lugar. E é assim que os perturbados vivem apenas o momento presente o qual de tão curto que é não pode ser agarrado, e nem mesmo disso se apercebem tão ocupados que estão.

Numa palavra, queres saber porque é que não têm uma vida longa ? Observa como eles a desejam; velhos frágeis suplicam por mais uns anos; fingem ser mais novos do que são, confortam-se com esta ilusão e enganam-se a si próprios como se conseguissem igualmente enganar o destino. E quando finalmente uma doença lhes lembra a sua mortalidade, de que maneira tão aterrorizada é aquela como morrem ! É como se não estivessem a abandonar a vida, mas sim a ser arrastados para fora dela ! Exclamam que loucos foram, porque só nessa altura compreendem que não viveram realmente, e então prometem que se escaparem então sim, viverão como deve ser. Reflectem tristemente sobre as coisas que juntaram e que nunca poderão usufruir, e em como todos os seus trabalhos foram em vão.

Mas para aqueles cuja vida não foi dedicada às coisas mundanas, esta foi certamente suficientemente longa. Nenhuma parte dela foi desbaratada, nenhuma gasta por aqui e ali, nenhuma perdida descuidadamente, a nenhuma parte não foi dado o devido valor, nenhuma foi supérflua e toda ela foi, por assim dizer, bem investida.

E mesmo que tenha sido curta foi completamente suficiente e portanto nenhum homem sábio hesitará, quando chegar a hora, em enfrentar a morte com um passo firme.

De todas as pessoas apenas aquelas que dispõem de algum tempo livre para dedicar à filosofia estão realmente vivas. Não só cuidam do seu tempo como juntam à sua própria vida a sabedoria do passado. A menos que sejamos muitíssimo ingratos, todos aqueles insignes fundadores das sagradas correntes de pensamento nasceram para nós, e prepararam para nós um modo de viver. Graças às provações  por eles sofridas, somos levados à presença das coisas que souberam tirar da escuridão para a luz do dia. Nada do passado nos é vedado se possuirmos a elevação de espírito necessária para ultrapassar a estreiteza da fragilidade humana.

Podemos argumentar com Sócrates, manifestar dúvidas com Carneades, cultivar o isolamento com Epicuro, transcender a natureza humana com os Estóicos, e ir além dos seus limites com os Cínicos.

E uma vez que a natureza nos permite viver em comunhão com todas as épocas passadas, porque não voltar resolutamente as costas a este breve instante chamado vida e entregarmos-nos inteiramente ao passado, ilimitado e eterno e que podemos partilhar com quem foi melhor do que nós ?

Que poderá ser mais proveitoso do que ter como amigos Zeno, Pitágoras, Demócrito, e todos os outros grandes sacerdotes dos estudos liberais como Aristóteles e Teofrasto ?

Nenhum estará jamais demasiado ocupado para vos poder atender, e nenhum se despedirá das suas visitas sem que elas partam mais felizes do que quando chegaram, jamais voltando de mãos vazias. Noite e dia lá estarão prontos a receber quem os procurar.

Nenhum deles vos forçará a morrer, mas todos vos ensinarão em como morrer. Nada quererão de vós, mas juntarão as vidas deles às vossas. Com nenhum a conversa será perigosa, com nenhum a amizade se revelará fatal ou o convívio dispendioso. Deles poderão levar o que quiserem e não será sua culpa se não tomarem o necessário.

Que felicidade, que boa velhice espera aqueles que se tornarem deles clientes ! Terão amigos cujo sábio conselho poderão pedir sobre todas as questões, das mais importantes às mais triviais, e dos quais ouvirão sempre a verdade e nunca insultos nem lisonja.

Temos o costume de dizer que não esteve nas nossas mãos escolher os nossos pais, mas podemos no entanto escolher de quem queremos ser filhos, e estas são famílias com os mais nobres dos intelectos e de quem herdarão não apenas o nome mas como também os bens. Mas estes, contrariamente aos outros, não será necessário guardar ciosamente, pois quanto mais forem partilhados mais crescerão. Oferecem graciosamente uma via para a imortalidade e elevar-vos-ão a um pedestal do qual ninguém vos poderá apear.

Esta é a única maneira de prolongar a mortalidade – mesmo transforma-la em imortalidade.

Honras, monumentos, tudo aquilo que os ambiciosos quiseram ou construíram serão rapidamente destruídos : Não há nada que resista à passagem do tempo, mas nada afectará as obras que a filosofia consagrou, nenhuma geração futura as poderá apagar ou diminuir, pelo contrário, o passar dos anos apenas aumentará a veneração por elas.

Para o filósofo o tempo passou : ele recorda-o na sua memória. O tempo é o presente : ele usa-o. È tempo do futuro: ele antecipa-o. È esta combinação de todos os tempos num só que lhe confere uma vida longa.

Mas a vida é curta e angustiante para aqueles que esquecem o passado, negligenciam o presente e temem o futuro. E quando chegam ao fim esses pobres coitados percebem tarde de mais que gastaram todo o seu tempo ocupados em fazer nada.

Por isso, meu caro Paulino, afasta-te da multidão uma vez que já sofreste mais tempestades daquelas que a tua idade merecia, e deves finalmente procurar um porto de abrigo. Considera quantas foram as vezes que encontraste um mar encapelado, quantas tormentas- algumas na tua vida privada- outras que te fizeram sofrer na tua vida pública. O teu valor foi inúmeras vezes demonstrado quando eras um modelo no desempenho dos teus cargos: Terás agora que demonstrar o mesmo valor quando gozares o merecido descanso. A maior parte da tua vida, certamente a melhor, foi passada ao serviço do Estado : É altura de gastares o teu tempo contigo próprio. Não estou a sugerir que fiques ocioso ou que passes os dias a dormir ou a gozar aqueles prazeres favoritos das massas incultas. Isso não é estar em repouso. Verás que quando te retirares da vida activa e gozares de paz de espírito estarás totalmente ocupado com actividades muito mais importantes do que aquelas que desempenhaste com tanta energia.

Logo quando vires alguém usando as vestes do seu alto cargo, alguém cujo nome é muito falado no Fórum, não o invejes : Essas coisas são conseguidas à custa de uma vida. Para gozarem um ano de fama delapidaram todos os anos que viveram.

Muitos homens lutaram no inicio das suas carreiras até conseguirem atingir as alturas das suas ambições. Muitos arrastaram-se sofrendo mil indignidades para puderem alcançar a dignidade de um alto cargo, para no fim tristemente concluírem que tudo por que passaram não valeu mais do que um simples epitáfio.

Viveram as suas vidas sem gosto, sem se tornarem melhores pessoas, e sem pensarem que um dia a morte chegaria. Aliás, muitos deles até para depois da morte planearam o futuro, construindo opulentos mausoléus e deixando ordens para funerais de ostentação, mas na realidade o que mereciam era o mais modesto dos enterros, como se fossem crianças pobres a caminho da sepultura, tão curta e sem sentido foi afinal a sua vida.



(texto editado e traduzido por manuel.m)















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January 13th, 2014 Wuchi

13/1/2014

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              WUCHI







Quando os politicos dizem que o mercado de trabalho tem de ser mais competitivo esquecem-se muito convenientemente de dizer com quem. Porém o desinvestimento na educação pública responde à questão, pois se a meta for apenas o ensinar a ler, escrever, contar e pouco mais, como acontecia aliás no antigamente, então o resultado vai ser formar jovens que serão vistos como meras unidades de produção, jovens esses que irão ter de sobreviver no futuro com os baixíssimos salários a que a sua falta de qualificações condenou.

Os smart-phones, com o Twitter e o Facebook, podem por enquanto dar-lhes a ilusão de que pertencem ao primeiro mundo, mas não faltará muito para ao entrar no mercado de trabalho, a maioria deles descubra de que lado estão, e não será no dos que os usam, mas no dos que os fabricam, em condições deploráveis e ganhando salários irrisórios.

Perto de Shanghai, numa cidade chamada Wuchi, recentemente uma ong chinesa a China Labor Watch, denunciou as condições a que são sujeitos os trabalhadores que produzem os almejados iPhones : Turnos de doze horas, com apenas dois intervalos de meia-hora cada, e semanas com uma média de 70 horas de trabalho.

Óbviamente que não é a Apple que é a proprietária ou que gere directamente essa fábrica; a sua imagem é demasiado valiosa para permitir ser associada a condições de trabalho tão desumanas. Quem tem essa função é uma das maiores firmas americanas a Jabil Circuit, baseada na Flórida e proprietária de 60 fábricas, tendo uma facturação anual de US$ 11 biliões e que só em Wuchi emprega 30.000 pessoas.

Claro que, denunciado o escandalo, a Jabil veio pressurosa garantir que levava muito a sério as condições de trabalho dos seus funcionários, e que um rigoroso inquérito interno seria de imediato levado a cabo. Mas a Jabil sabe melhor do que ninguém que a sua prática corrente é sub-contratar os trabalhadores a agências que são na realidade os verdadeiros patrões, fixando e pagando os salários e impondo as demais condições, e obrigando os candidatos à admissão a pagar, entre outras coisas, uma elevada taxa de inscrição, os exames médicos e até o documento de identificação pessoal. As do sexo feminino têm ainda de custear um teste de gravidez que lhes é exigido, embora seja ilegal.

As fábricas da Jabil garantem o alojamento em dormitórios, com 8 trabalhadores em cada quarto, e como são  vários os turnos, (a fábrica labora 24 horas por dia), faz com que não sejam criadas as condições minimas para o repouso. O salário base é de cerca de € 200 mensais, e só realizando um minimo de 100 horas extraordinárias por mês podem os trabalhadores ganhar um valor que lhes permita viver.

As condições de laboração são deploráveis e não é fornecido equipamento de protecção eficaz, mas a Jabil dá muita importancia à segurança interna, que é garantida por meios sofisticados, e os trabalhadores são obrigados a assinar um compromisso de confidencialidade e estão sujeitos a revistas pessoais frequentes, mesmo quando vão aos sanitários.

Perante esta situação a Jabil tornou publico um comunicado onde se lê :

“Jabil está empenhada em manter um ambiente de trabalho seguro e onde seja garantida a dignidade e o respeito pelos seus funcionários e toma muito a sério as alegações recentes que esses requesitos não estejam a ser cumpridos, e fará as necessárias correções se se confirmar a sua veracidade”.

Também a Apple comunicou :”...Temos orgulho no trabalho que realizamos em conjunto com os nossos fornecedores na melhoria das condições de trabalho....Acreditamos na transparencia e na responsabilização da nossa empresa pela estrita observancia do nosso código de conduta no fabrico dos nossos produtos...”

A Jabil tem fábricas em vários países onde se praticam baixos salários, tais como a China, India, Brasil e Vietname, e estará certamente aberta a investir no futuro noutros que igualmente garantam as mesmas condições. Quais serão eles ?




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Da Vida Breve 2

6/1/2014

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Da Vida Breve
  
           
(De Brevitate Vitae ad Paulinum)

                         CARTA A PAULINO

                                 II
                                         *****
                                                                                   Lucius Annaeus Seneca
                                                                                              (4bc-65ad)

(continuação)


(...)É geralmente aceite que nenhuma actividade pode ser levada a cabo com sucesso por alguém que esteja num estado de perturbação,  seja essa actividade o estudo da retórica ou os estudos liberais, porque uma mente  assim não absorve nada em profundidade e rejeita tudo aquilo que se tentar meter-lhe dentro. Saber viver é a menor das preocupações para quem está assim e no entanto nada é mais difícil de aprender. Professores em todas as outras artes são fáceis de encontrar em todo o lado, na realidade até crianças foram capazes de as aprender,  algumas mesmo capazes de  ensinar. Mas aprender a viver leva uma vida inteira , e isto pode surpreender-te, mas leva também uma vida inteira o aprender a morrer. Muitos dos grandes homens puseram de lado todas as suas tarefas mundanas, renunciando a riquezas , negócios e prazeres e fizeram com que  o objectivo até ao fim dos seus dias fosse unicamente o conseguirem saber em como viver. E no entanto muitos chegaram ao momento da morte confessando que não foram capazes de atingir esse conhecimento. Acredita-me, é sinal de um grande homem,  de um que está acima dos erros humanos, não permitir que o seu tempo seja desperdiçado : É uma pessoa assim que terá uma vida  o mais longa possível pelo simples facto de  devotar a si própria todo o tempo que consiga dispor. Nenhum desse tempo é deixado vazio, nenhum é negligenciado, nenhum é deixado sob  o controle alheio ; e sendo uma parcimoniosa guardiã do seu tempo essa pessoa nunca encontrará coisa que seja suficientemente valiosa que valha a pena aceitar em troca. 

Portanto ela terá tempo para tudo; mas aqueles cujas vidas estão demasiadamente
expostas à devassa pública, inevitavelmente dele terão muito pouco.

Não deves pensar que essas pessoas não reconhecem às vezes aquilo que perdem. Na verdade pode-se ouvir o queixume de muitos daqueles cuja grande prosperidade se tornou num fardo, proferido no meio da multidão dos seus clientes, ou durante os pleitos na barra dos tribunais, clamando “Esta vida é impossível !”. Claro que é impossível. Todos aqueles que te chamam a si te afastam de ti. Quantos foram os dias que aquele acusado te   roubou? Ou aquele candidato ? Ou aquela velha senhora destroçada pela morte dos seus descendentes ? Ou aquele que se finge muito doente só para revelar a cupidez dos seus herdeiros ? Ou aquele amigo influente que anda contigo não por amizade, mas por contigo se poder mostrar ?


Toma bem nota, digo-te eu, e faz as contas aos dias da tua vida e verás quão poucos ficaram para ti. Um homem que tenha conseguido um alto cargo anseia por poder dele sair, e repete constantemente : “Será que isto nunca mais acaba ?” Outro, tendo achado ser um grande feito ter conseguido que ficasse a seu cargo a organização dos Jogos,  diz : “Quando será que me consigo ver livre disto ?” O advogado quando atravessa o Fórum é puxado por todos os lados por gente que quer a sua atenção exclama :” Será que as férias nunca mais vêm ?” Toda a gente se arrasta pela vida com um perturbador anseio pelo futuro e um imenso cansaço pelo presente. Mas aquele que gasta o seu tempo satisfazendo as suas necessidades, que organiza cada dia como se fosse o último, não anseia nem teme o dia seguinte. Que novos prazeres poderá trazer-lhe mais uma hora ? Porque ele fez tudo, tudo experimentou e apreciou plenamente cada momento passado. Quanto ao resto o destino pode dispor como lhe aprouver. A sua vida está segura e dela nada lhe podem tirar. Quando muito podem adicionar algo, mas será como alguém que após uma lauta refeição se sente satisfeito, mas não ao ponto de não poder aceitar comer mais um pouco.


Portanto não penses que lá por alguém ter o cabelo branco e rugas que teve uma vida longa : Provavelmente não viveu muito, apenas existiu muito. O que pensarias de um homem que parte para uma grande viagem mas cujo navio logo à saída do porto é apanhado por ventos e correntes contrários que fazem com que o barco ande às voltas ao sabor do temporal ? Dirias que ele fez uma longa viagem, ou  que apenas andou aos trambolhões ?


As pessoas gostam de receber prebendas e recompensas pelas quais deram o seu trabalho ou usaram a sua influencia ou providenciaram a satisfação  de necessidades de terceiros. Mas ninguém calcula quanto vale o tempo : Os homens usam-no liberalmente como se nada custasse. Mas quando a morte ameaça essas mesmas pessoas, vê-las-emos suplicando aos  médicos e se temerem que o que se avizinha é a pena capital, então estarão preparadas para gastarem tudo o que têm para continuarem vivas. São assim tão inconsistentes nos seus sentimentos. Se cada um  de nós pudesse conhecer o numero de anos que nos restam da mesma maneira que sabemos quantos já passaram, que desesperados ficariam aqueles que soubessem  que muito poucos lhes faltam, e com que cuidados os usariam ! E no entanto seria fácil organizar esse numero, pequeno mas certo; o que há a fazer é preservar com cuidado o que fatalmente acabará num ponto para nós ainda desconhecido.


Nada pode trazer os anos passados de volta; ninguém poderá devolver-te  a vida que já viveste. Ela continuará o rumo que terá tomado e não inverterá a marcha nem mudará de direcção. Não te causará alarme pela rapidez com que corre, porque desliza silenciosamente. Não crescerá nem por ordem do rei, nem do povo. Como será o final ? Tens estado distraído enquanto ela avança. Entretanto a morte chegará e não terás alternativa senão estares preparado para ela.


Haverá coisa mais idiota do que certas pessoas que se gabam da sua visão do futuro? Mantêm-se ocupados a melhorar as suas vidas; passam a vida a organizar a vida. Dirigem as suas energias para um ponto distante no tempo. Mas adiar é o maior desperdício que há: Tira-nos dia após dia, negando-nos o presente com a promessa do que há de vir. O grande obstáculo  em viver é a expectativa que se prende com o amanhã e que perde o hoje. Queres dispor daquilo que depende somente do desconhecido, enquanto não ligas aquilo que podes realmente controlar. O que desejas? Que objectivo é esse pelo qual lutas? Todo o futuro é incerto: vive imediatamente. Ouve o grito do nosso maior poeta que como que inspirado pelo divino canta os inspiradores versos:


 O mais belo dia da vida dos desgraçados
mortais, 

Aqui é sempre o primeiro a fugir.  (1)


 “Porque hesitas ?”, pergunta ele, “Porque estás parado? Se não o agarras primeiro ele foge !”. E mesmo que o agarres ele foge na mesma!

(continua)


(1) Virgílio –
Geórgicas, Livro III (n.t.)



 








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WONGA

2/1/2014

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                               WONGA












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Os desenhos animados mostram três ou quatro idosos  com um ar contente e bem disposto e que ao som de uma musiquinha também alegre, saltitam pelo cenário lépidos e ladinos, felizes por finalmente poderem ter tudo aquilo que já tinham perdido a esperança de vir a ter, e tudo graças à Wonga !

Wonga, o abre-te sesamo, a cornucópia da abundancia, tudo ali à mão, tudo fácil de obter sem esforço,  bastando querer !

Mas o filmezinho não é dirigido aos idosos, nem sequer passa no horário nobre das televisões, corre sobretudo nos programas destinados aos mais jovens, o seu alvo é a geração do twitter e do facebook e se são velhotes os que aparecem é porque   são eficazes a transmitir a ideia de confiança, de inocencia, e de que pedir um empréstimo à Wonga, além de ser inofensivo e divertido, é uma verdadeira alegria !

Mas afinal o que é a Wonga ? O que faz, o que vende ?

A Wonga é  a companhia que melhores resultados financeiros consegue, cujos lucros mais crescem, (cerca de 36% ao ano), e tudo isto em menos de nada. Ela é a pedra filosofal do capitalismo, o elixir mágico dos alquimistas, ela consegue que de milhões de algibeiras exauridas, jorre uma torrente de ouro inesgotável.

O que faz é agiotagem, e o que vende não são sonhos, são desgraças e pesadelos e até há bem pouco tempo o seu produto mais vendido era um crédito de £ 1.000 por 45 dias a um juro anualizado de 4.214 %.

Mas esses escandalosos juros pertencem ao passado,   porque foi considerado pela Wonga que esses valores não “alavancavam” suficientemente os seus lucros, e a sua administração, num acto perfeitamente legal e de boa gestão dos recursos disponiveis , fez um novo “desenho” do seu modelo de negócio em consequencia do qual aumentou os juros apenas 1.600%, o que fez com que atinjam actualmente uns obscenos 5.853% ao ano ! ( nesta altura o leitor estará a reler o paragrafo anterior para se certificar se leu bem os numeros. Não se enganou, leu bem, são mesmo 5.853% , o que significa que por um empréstimo de £10 terá pago £585 de juros no fim do prazo.)

E no caso do devedor ter dificuldades de cumprir os pagamentos, a Wonga simpáticamente propõe o roll-over da dívida com novos prazos e mais longas maturidades, mas com o pequeno detalhe do capital em divida ficar o dobro ou triplo do original. E no caso de o devedor tiver entrado mesmo em incumprimento, era politica da Wonga fazer a ameaça de lhe instaurar  um processo crime por fraude. Não é dificil de imaginar o que significava para alguém que por enfrentar uma situação angustiosa tivesse tido de sugeitar-se às condições leoninas impostas pela Wonga, e vendo-se impossibilitado de cumprir as condições , se ver ainda por cima ameaçado de ir parar à cadeia acusado de ser burlão.

Esta prática, ilegal e moralmente repelente, apenas terminou quando o Office for Fair Trading, o organismo que supostamente defende o consumidor, acordou da sua letargia habitual e lhe pôs fim.

Aliás a percentagem de crédito mal parado é de 7,4% , coisa capaz de provocar uma apoplexia em qualquer banqueiro, mas que são “peanuts” para a Wonga dado o nivel dos juros que cobra.

Estima-se que no Reino Unido existam 10 milhões de pessoas que devido aos seus parcos recursos não têm acesso ao crédito bancário, a maioria por não terem trabalho, outros (cerca de um milhão), não sendo oficialmente desempregados, (não tendo por isso direito a qualquer ajuda), estão no chamado horário zero e só são chamados a trabalhar eventualmente. Para a maioria dessa fatia da população, que normalmente faz trabalhos pouco qualificados, (quandos os tem), mantem-se o pagamento à semana e recorrer à agiotagem da Wonga é a única saída para por exemplo impedir o corte da luz ou da água ou para simplesmente dar de comer à familia. Aliás estes empréstimos são chamados "payday loans" ou empréstimos até ao dia do pagamento. É este o território de caça da Wonga , e o “alimento” para os seus afiados dentes são aqueles que na sua desavergonhada teminologia baptizou como sendo os “underbanked”, aqueles que “não têm nivel para chegar aos Bancos”, essa sub-gente a que não resta alternativa senão solicitar à Wonga pequenos empréstimos por prazos curtos e a juros exorbitantes, para resolver situações de grande necessidade.

Mas há  pior :

Têm vindo a público inúmeros casos de menores que a Wonga contacta directamente oferecendo empréstimos.

Um desses é o que aconteceu a Dennis Earle que recebeu em 6 de Novembro passado uma carta endereçada a si  com o seu nome completo e dirigida para a casa de familia no Hertforshire, e onde se lia : ” Provavelmente já ouviu falar em nós e gostaríamos que soubesse que temos o prazer de lhe “oferecer” um empéstimo até £ 400 em condições muito vantajosas ! ”.

Acontece que o jovem Dennis tem apenas 12 anos.

Os anuncios transmitidos nos intervalos dos programas infantis transmitem uma mensagem muito simples :

“ Gostavas de ter um ipad, um smart-phone, um tablet, ou uma X-Box e os teus pais dizem que não têm dinheiro ?"

"Fala-lhes na Wonga e diz-lhes que se  quizerem podem dar-te tudo isso !”

(ou seja a mensagem subliminar é se não te dão é porque são maus e não gostam de ti )

Ed Miliband , o líder do Partido Trabalhista, falando recentemente no Parlamento exigiu a proíbição dos anuncios da Wonga durante os programas para crianças por serem imorais, ao mesmo tempo que denunciava o facto de muitos milhares de familias estarem a caír na armadilha de contraírem empréstimos que jamais poderão pagar, transformando a economia do Reino Unido numa espécie de “economia wonga”.

À voz de Ed Miliband juntou-se a do Arcebispo de Cantuária , Justin Welby, a figura maior da Igreja Anglicana, o qual condenou públicamente em termos claros e de grande severidade as práticas da Wonga que diz só ter surgido devido aos cortes dos apoios sociais aos mais desfavorecidos feita pelo presente governo , sendo a proliferação explosiva do numero de bancos alimentares outra das suas consequencias.

Mas não há nada que politicos sem escrúpulos não consigam com um pouco de hipocrisia e uma pitada de cinismo, e neste caso o discurso do poder é legitimar a existencia da Wonga pela estupidez dos que recorrem a ela para pagar férias em sitios exóticos ou comprar televisões plasma. Ou seja a razão que explica o facto de os pobres serem pobres deve-se a serem estúpidos, e é por serem estúpidos que são clientes da Wonga.
O que se não diz é qual a razão para tão larga parte da população viver aflitivamente de pagamento em pagamento, faltando-lhe frequentemente dinheiro para as despesas mais básicas.

















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