UMA HISTÓRIA ALGARVIA
A meio da tarde de amanhã embarcaremos em Portsmouth no ferry " Pont Aven" que em 24 horas nos levará até Santander no norte de Espanha.
Nos últimos anos tem sido este o nosso hábito, não porque alguma fobia nos afaste dos aviões, mas porque indo de carro aproveitamos para conhecer outras terras pelo caminho. Apesar do navio ser grande, (2.000 passageiros e 500 automóveis), e do mar do golfo da Biscaia nem no pino do verão garantir uma travessia calma, o prazer de ir tranquilamente estrada fora até Portugal tem-nos feito suportar enjoos vários. No regresso, ( e esta para mim é a razão mais forte), aproveito para trazer o maior numero de caixas de vinho que consigo carregar, vinho esse que durante o ano vou oferecendo a familiares, amigos, e vizinhos, o que me dá um infinito prazer.
O nosso destino é inevitavelmente o sunny Algarve, e a zona de Monte Gordo . Muito antes de termos poiso próprio, já esse era o nosso lugar favorito e para onde, como as andorinhas, voltávamos sempre.
A nossa casa, simpática e cheia de luz, fica numa rua tranquila e a dois passos da praia e tem um pátio com um grelhador onde dou largas aos meus dotes culinários. Sabe-se que os britânicos são o único povo do mundo que domina a ciência de fazer barbecues à chuva mas eu, sendo o clima a maravilha que é, ainda não tive a oportunidade de demonstrar como, segurando o guarda chuva numa mão e a tenaz noutra, debaixo de um dilúvio é possivel cozinhar T-Bone steaks ao ponto.
Temos sido maravilhosamente tratados por toda a gente, a compra da casa correu sem o mínimo problema burocrático e portanto vivendo entre gente acolhedora, usufruindo de uma praia soberba e de um clima deslumbrante, sentimo-nos verdadeiramente no sétimo céu.
Curiosa expressão esta que me tem dado que pensar: É que em Inglês para significar o mesmo estado de bem-aventurança diz-se que se está on cloud nine, na nuvem nove. Acabei por concluir que a origem dessas expressões está na descrição que Dante faz do paraíso na sua Divina Comédia: Para ele nove níveis ou esferas tinha o paraíso, (tantos quanto o inferno...), logo os Portugueses contentar-se-iam com o sétimo, correspondendo a Saturno e simbolizando a temperança, enquanto os Ingleses não se satisfariam senão com o nono, o primum mobile, o mais elevado de todos. Porém subitamente um problema surgiu que deitou por terra tão bela teoria: É que para Dante o sétimo céu está reservado aos contemplativos e o nono aos anjos, e parece-me arriscado classificar os Portugueses como sendo um povo contemplativo, e ainda mais os Ingleses como sendo um povo de anjos. E para isto ainda não arranjei solução.
Mas nem tudo foram rosas, e nada nos tinha preparado para o que seria o nosso primeiro Agosto no Algarve :
Subitamente a praia, que era um oásis de tranquilidade convidando a longas caminhadas, foi invadida por uma multidão ululante e transformada em campo de futebol e de ténis.
No meio dos pacíficos banhistas, com crianças correndo, passaram a disputar-se ferozes jogos entre grupos de energúmenos que encontravam na praia o palco para demonstrar possuir ignorados talentos de verdadeiros Cristianos Ronaldos. E se não era futebol era o jogo das raquetes no qual se exibiam magotes de Navratilovas e Federeres batendo com raiva a bola, como que procurando vingança por não estarem em Flushing Meadows ou no court principal de Wimbledon, em vez de jogarem na modesta Mantarrota.
Logo de manhã cedo era vê-los impantes, com a sua bolinha debaixo do braço, a chinelar rua abaixo em direcção à praia. Procurei saber se tamanhos atentados à segurança e à tranquilidade publicas eram permitidos, ao que o banheiro gravemente me apontou o Edital segundo o qual eram expressamente proibidos os jogos com bola.
Mas, muito embora por vezes passasse a Policia Marítima num rutilante jipe, com jovens guardas em poses imperiais nos seus Ray-Ban, estes pareciam também estar ausentes do lugar por terem sido como que tele-transportados talvez para South Beach, daí a sua presença não ter o minimo efeito nos alienados que continuavam furiosamente entregues aos seus jogos.
Outra coisa que notei foi que os homens que liam jornais na praia se dividiam grosso-modo em dois grandes grupos: Os que liam o Record e os que liam A Bola. Mas não liam de uma maneira qualquer, faziam-no concentradissimos , de cenho franzido. Ora até eu sei que em Agosto não há futebol, e nunca consegui imaginar que transcendentes noticias seriam aquelas capazes de absorver os leitores tão intensamente.
Ainda tentamos uma ou duas vezes fazer o nosso passeio pelo areal, mas desde os tempos de África que não me sentia correr um perigo tão iminente, e portanto tristemente desistimos. Agora, e aprendida a lição, nunca depois de meados de Julho, regressamos cabisbaixos prudentemente a casa, e só regressamos lá para Setembro, quando alguma sanidade mental volta a reinar no local.

Confiar apenas na minha memória seria desastre certo, e graças ao Kindle posso facilmente transportar uma biblioteca considerável, bem como alguns anos de notas várias. Laboriosamente transferi para uma pen apontamentos que pensei puderem vir a ser úteis e quanto ao resto confio que as musas não me abandonem e que se dêem bem pelos Algarves.
Estarei sujeito aos caprichos da banda larga móvel, no meu sitio exasperantemente lenta, mas com mais ou menos dificuldade acho que conseguirei levar a carta a Garcia e que dentro de não muito tempo poderei voltar a dar noticias.