A Gazeta do Middlesex

Uma História Algarvia

28/4/2014

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                                   UMA HISTÓRIA ALGARVIA





  A meio da tarde de amanhã  embarcaremos em Portsmouth no ferry " Pont Aven"  que em 24 horas nos levará até Santander no norte de Espanha.

Nos últimos anos tem sido este o nosso hábito, não porque alguma fobia nos afaste dos aviões, mas porque indo de carro aproveitamos para conhecer outras terras  pelo caminho. Apesar do navio ser grande, (2.000 passageiros e 500 automóveis), e do mar do golfo da Biscaia nem no pino do verão garantir uma travessia calma, o prazer de ir tranquilamente estrada fora até Portugal tem-nos feito suportar enjoos vários. No regresso, ( e esta para mim é a razão mais forte), aproveito para trazer o maior numero de caixas de vinho que consigo carregar, vinho esse que durante o ano vou oferecendo a familiares, amigos, e vizinhos, o que me dá um infinito prazer.

O nosso destino é inevitavelmente o sunny Algarve, e a zona de Monte Gordo . Muito antes de termos poiso próprio, já esse era o nosso lugar favorito e para onde, como as andorinhas, voltávamos sempre.

A nossa casa, simpática e cheia de luz, fica numa rua tranquila e a dois passos da praia e tem um pátio com um grelhador onde dou largas aos meus dotes culinários. Sabe-se que os britânicos são o único povo do mundo que domina a ciência de fazer barbecues à chuva mas eu, sendo o clima a maravilha que é, ainda não tive a oportunidade de demonstrar  como, segurando o guarda chuva numa mão e a tenaz noutra,  debaixo de um dilúvio é possivel cozinhar T-Bone steaks ao ponto.

Temos sido maravilhosamente tratados por toda a gente, a compra da casa correu sem o mínimo problema burocrático e portanto vivendo entre gente acolhedora, usufruindo de uma praia soberba e de um clima deslumbrante, sentimo-nos verdadeiramente no sétimo céu.

Curiosa expressão esta que me tem dado que pensar: É que em Inglês para significar o mesmo estado de bem-aventurança diz-se que se está on cloud nine, na nuvem nove. Acabei por concluir que  a origem dessas expressões está na descrição que Dante faz do paraíso na sua Divina Comédia: Para ele nove níveis ou esferas tinha o paraíso, (tantos quanto o inferno...), logo os Portugueses contentar-se-iam com o sétimo, correspondendo a Saturno e simbolizando a temperança, enquanto os Ingleses não se satisfariam senão com o nono, o primum mobile, o mais elevado de todos. Porém subitamente um problema surgiu que deitou por terra tão bela teoria: É que para Dante o sétimo céu está reservado aos contemplativos e o nono aos anjos, e parece-me arriscado classificar os Portugueses como sendo um povo contemplativo, e ainda mais os Ingleses como sendo um povo de anjos. E para isto ainda não arranjei solução.




Mas nem tudo foram rosas, e nada nos tinha preparado para o que seria o nosso primeiro Agosto no Algarve :




Subitamente a praia, que era um oásis de tranquilidade convidando a longas caminhadas, foi invadida por uma multidão ululante e transformada em campo de futebol e de ténis.

No meio dos pacíficos banhistas, com crianças correndo, passaram a disputar-se ferozes jogos entre grupos de energúmenos que encontravam na praia o palco para demonstrar possuir ignorados talentos de verdadeiros Cristianos Ronaldos. E se não era futebol era o jogo das raquetes no qual se exibiam magotes de Navratilovas e Federeres batendo com raiva a bola, como que procurando vingança por não estarem em Flushing Meadows ou no court principal de Wimbledon, em vez de jogarem na modesta Mantarrota.

Logo de manhã cedo era vê-los impantes, com a sua bolinha debaixo do braço, a chinelar rua abaixo em direcção à praia. Procurei saber se tamanhos atentados à segurança e à tranquilidade publicas eram permitidos, ao que o banheiro gravemente me apontou o Edital   segundo o qual eram expressamente proibidos os jogos com bola.

Mas, muito embora por vezes passasse a Policia Marítima num rutilante jipe, com jovens guardas em poses imperiais  nos seus Ray-Ban, estes pareciam também estar ausentes do lugar por terem sido como que tele-transportados talvez para South Beach, daí  a sua presença não ter o minimo efeito  nos  alienados que continuavam furiosamente entregues aos seus jogos.

Outra coisa que notei foi que os homens que liam jornais na praia se dividiam grosso-modo em dois grandes grupos: Os que liam o Record e os que liam A Bola. Mas não liam de uma maneira qualquer, faziam-no concentradissimos , de cenho franzido. Ora até eu sei que em Agosto não há futebol, e nunca consegui imaginar que transcendentes noticias seriam aquelas  capazes de absorver os   leitores tão intensamente.

Ainda tentamos uma ou duas vezes fazer o nosso passeio pelo areal, mas desde os tempos de África que não me sentia correr um perigo tão iminente, e portanto tristemente desistimos. Agora, e aprendida a lição, nunca depois de meados de Julho, regressamos cabisbaixos prudentemente a casa, e só regressamos lá para Setembro, quando alguma sanidade mental volta a reinar no local.




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Este ano é porém diferente pois carrego sobre os ombros a responsabilidade de manter a Gazeta viva e de não provocar cruéis decepções aos meus fidelíssimos leitores.

Confiar apenas na minha memória seria desastre certo, e graças ao Kindle posso facilmente transportar uma biblioteca  considerável, bem como alguns anos de notas várias. Laboriosamente transferi para uma pen apontamentos que pensei puderem vir a ser úteis e quanto ao resto confio que as musas não me abandonem e que se dêem bem pelos Algarves.

Estarei sujeito aos caprichos da banda larga móvel, no meu sitio exasperantemente lenta, mas com mais ou menos dificuldade acho que conseguirei levar a carta a Garcia e que dentro de não muito tempo poderei voltar a dar noticias.






                                                                                                                                                












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Lusitania

25/4/2014

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Christopher Hitchens, o militante de todas as causas nobres, o soldado na primeira linha de todas as lutas e tão precocemente desaparecido, escreveu nas suas memórias Hitch 22: A Memoir as suas recordações do Portugal do 25 de Abril. Parece apropriado celebrar a data publicando este excerto:







                                                                   LUSITANIA







“Embora pareça mediterrânico, Portugal é o único país europeu que tem o Atlântico a banhar a sua capital. Os seus extraordinários marinheiros levaram a sua língua com o seu estranho sotaque até Timor e Macau, muito embora o Rei Henrique “o navegador”(1) provavelmente nunca tenha estado a bordo de um navio.

Logo que pude, após a revolução de Abril de 1974, cheguei a Lisboa muito normalmente de avião e fui mandado esperar na zona da alfandega. Estaria eu nalguma lista de indesejáveis como me tinha acontecido previamente noutros aeroportos ? Um oficial de cabelos brancos e ar desengonçado estendeu-me a mão e identificou-se como sendo Viera da Fonseca (2), tal como o delicioso vinho do Porto. Fui informado que me conduziria a um hotel. Aparentemente eu seria um hospede de honra e pela primeira vez na vida constava de uma lista de desejáveis . Quando os arquivos da policia secreta de Salazar/Caetano foram abertos ficou a saber-se que eu estava referenciado como sendo um perigoso inimigo do ancien régime (3).Eu tinha imaginado que iria dormir todo contente no meio dos meus camaradas no chão de qualquer casa de um bairro de lata, mas acabei por ser levado para um quarto num andar superior do Hotel Tivoli na Avenida Libertad (4), onde podia apreciar uma magnifica vista sobre o porto. Isto pareceu-me exagerado, como se estivesse a receber os lucros e dividendos de um investimento que não tinha realizado. Tomei então a decisão intima de não me deixar habituar.

Mas a queda do fascismo em Lisboa em Abril de 1974 foi o que se pode descrever como o acontecer da tempestade perfeita de todos os desejos radicais. O derrube da ditadura de Caetano não foi apenas parte da sempre adiada limpeza do fascismo pré-1939 na Europa, foi também uma espécie de vingança pela destruição no outono precedente, (a 11 de Setembro, para ser preciso), do governo de Allende no Chile. Outras felizes consequências tiveram lugar. Com a velha quadrilha afastada, o domínio de Portugal sobre as suas antigas colónias foi quebrado o que significou uma aceleração do fim dos regimes racistas da Rodésia e da África do Sul. Outros efeitos revolucionários eram possíveis de acontecer no Brasil de fala portuguesa, onde talvez a mais brutal ditadura militar da América do Sul tinha lugar, assim como na vizinha Espanha, onde os acontecimentos não deixariam de provocar um efeito desmoralizador no regime de Franco e nos seus aliados militares e religiosos.

 Linhas de fractura do terramoto irradiavam de Lisboa, todas abanando as estruturas da ordem tradicional. Isto apenas do lado político, porque na faceta cultural parecia que o melhor do Maio de 1968 ainda estava para acontecer. Um dos momentos mais marcantes da época pré-revolucionária foi a publicação de um manifesto feminista por três mulheres, todas de nome Maria, e «As Três Marias» tornaram-se num excitante exemplo do que o feminismo podia realizar quando confrontado por uma oligarquia teocrática que travava as mulheres como máquinas reprodutoras não muito diferentes de simples objectos. O sexo, reprimido durante demasiado tempo, sentia-se fortemente no ar: Lembro-me particularmente de um movimento, apenas parcialmente satírico, «Movimento da Esquerda Libidinosa» (5), com o seu slogan «somos um partido sexocrático»(6) ,cujo objectivo era freneticamente recuperar o tempo perdido. O melhor poster revolucionário que jamais vi, talvez o melhor de todos os tempos, expressava o mesmo pensamento de uma maneira menos erótica : Mostrava uma modesta família Portuguesa vestida tradicionalmente sendo apresentada a uma fila de novos amigos que incluinam Sócrates, Einstein, Beethoven, Espinoza, Charlie Chaplin, Louis Armstrong, Karl Marx e Sigmung Freud.( muita gente em países mais ricos ainda adia este encontro.)

Além de ser uma potencia colonial, Portugal sob o regime fascista era ele próprio uma semi-colónia, cuja principal exportação consistia em mão-de-obra barata para o resto da Europa e cuja taxa de analfabetismo rondava os trinta por cento...”







(1)- Alguma confusão de Chris Hitchens sobre a História de Portugal.

(2)-(3)-(4)-(5)-(6) – No original






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UKIP

23/4/2014

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            Propaganda do UKIP. Hoje na minha caixa do Correio.
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The End is Nigh !

21/4/2014

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                                                 ESCÓCIA

No dia 18 de Setembro realiza-se na Escócia um referendo sobre a sua independência do Reino Unido, quando os Escoceses comemoram os 700 anos da sua vitória sobre os Ingleses na batalha de Bannockburn. As sondagens davam no inicio uma confortável vitória ao Não, mas David Cameron fez o que nenhum Primeiro-Ministro inglês jamais deveria ter ousado, tentando intimidar os Escoceses com terriveis consequências se estes escolhessem a independência, o que teve o efeito contrário ao pretendido, passando as intenções de voto no Sim a crescer diariamente. Até Barroso teve o descaramento de entrar na refrega, intrometendo-se na política interna de um estado membro, declarando publicamente que proibiria uma Escócia independente de aderir à UE.

Alex Salmond, o First-Minister da Escócia e líder do SNP (Scottish National Party), de longe o mais capaz e astuto dos políticos do ainda Reino Unido, aproveita as visitas de ministros deste governo à Escócia para, quando anunciam catástrofes cada vez maiores caso vença o Sim, limitar-se a apontar que essas ameaças não passam de arrogância de colonizadores sobre colonizados. Portanto aquilo que era considerada até há pouco uma impossibilidade, a vitória dos pró-independentistas, tem hoje uma forte probabilidade de acontecer.

Se assim for, se o Reino Unido ficar a ser constituído apenas pela Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte, ninguém consegue prever o que o futuro reservará.




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                                                    UKIP                         

Ou “United Kingdom Independence Party” , tem no seu líder Nigel Farage alguém capaz de fazer com que largas franjas do eleitorado acreditem que todos os males deste país se devem à União Europeia.

Farage tem nos burocratas de Bruxelas um alvo descomunal para a sua propaganda , não cessando de lembrar que estes não foram eleitos e que gozam de mordomias escandalosas numa Europa em crise.

Infelizmente é fácil para um grande demagogo como ele acirrar a xenofobia, apontando os emigrantes, (um quarto de milhão por ano), como sendo os responsáveis pelo desemprego, falta de habitação, abuso dos apoios sociais e desprezo pelos valores e tradições nacionais.

David Cameron foi forçado a prometer um referendo para 2017 sobre a permanência do Reino Unido na UE e confirmando-se um grande aumento da votação no UKIP nas eleições do próximo mês, será muito difícil com os actuais lideres europeus inverter a dinâmica que levará fatalmente à saída da Grã-Bretanha.

                            DAVID CAMERON  E  ANGELA MERKEL

Quando a Suíça decidiu por referendo limitar a entrada de cidadãos comunitários no seu território, Barroso prometeu em retaliação a queda de uma chuva de enxofre sobre a cabeça dos suíços.

Muito convenientemente nunca mais se falou no assunto, até porque Cameron e Merkel irão tomar exactamente a mesma decisão no curto prazo.

A solidariedade é uma palavra muito bonita, mas os jovens dos países do Sul da Europa, jovens sem presente e sem qualquer esperança de futuro, estão a sair muito caros aos países ricos do Norte, que se preparam para lhes fechar a porta na cara.

Então acabará o direito dos cidadãos comunitários em residir em qualquer país da União, direito esse que era, é bom lembrar, o principio constitutivo do ideal europeu, pois sem a livre circulação de pessoas e bens a União Europeia, tal como a entendemos presentemente, terá deixado de existir de facto.

Restará talvez o euro como uma excrescência do defunto projecto europeu, euro que não será mais do que o Marco alemão sob outro nome, além de continuar para os países do Sul a eterna canga da divida.







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                                             BERLIM  E  KIEV




Não é necessário ser-se muito perspicaz para perceber que manter a flutuar a Ucrânia (ou o que dela restar) irá custar uma imensidão de dinheiro, o que significa obviamente que a factura aterrará no único sitio onde ele ainda existe ou seja em Berlim.

Ora começam a ser demasiados filhos para uma só mãe e é altura de fazer  escolhas, e só um néscio duvidará que, tendo a Alemanha de optar entre a Mitteleuropa e a periferia, não será aos países do Sul que será dito que terão de ir tratar da  sua vida.

Mas como alguém disse, há derrotas que são mais gloriosas que algumas vitórias, e existindo em Portugal politicos com tão elevado talento histriónico, certamente que eles  tentarão que seja nisso que os Portugueses acreditem.




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Le Portugal á Vol d'Oiseau

19/4/2014

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                           LE PORTUGAL Á VOL d'OISEAU


Em 1879 publicava-se em Paris um livro com o titulo “Le Portugal à Vol d'Oiseau” e sub-titulo “Portugais et Portugaises” , da autoria de Maria Rattazi, ou melhor, da Princesa Rattazi no qual, e na forma de vinte e cinco cartas, a autora descreve as suas impressões colhidas entre 1876 e 1879, período em que residiu em Portugal. A sua estadia constituiu um verdadeiro acontecimento social e cultural , uma rara oportunidade para num país remoto e esquecido se ver de perto uma personalidade da realeza europeia. Por onde andou, e a visitante percorreu grande parte do país, foi recebida com a reverencia devida ao seu real estatuto, com saraus, banquetes e missas Te Deum laudamus.

Mas a edição portuguesa de 1880, que recebeu o titulo “Portugal de Relance”, foi uma autentica “bomba” pois a autora, embora num estilo ameno e aparentemente benevolente, descreve os indígenas como sendo ignorantes, boçais e mal comportados, o que foi sentido por muitos como uma vil traição, tendo-se distinguido Camilo Castelo Branco nos insultos à ingrata visitante. Outros, como Antero de Quental, reconheceram com triste resignação alguma justeza nas farpas da Rattazi, e o leitor lendo os excertos aqui publicados, também à vol d'oiseau, fará o seu juízo.







A Rattazi que passou dois Invernos a desfrutar

os literatos de Lisboa, publicou agora um livro

sobre Portugal, delicioso. Imagine-se uma

parisiense descrevendo ao vivo estes mirmidões!

Não se fala noutra coisa e está tudo furioso.




Antero de Quental-carta a João Lobo de Moura,

Janeiro de 1880










Non, lá vraimente elle est bien bonne !...

Ce petit complot de Lisbonne,

c'est neuf, piquant, original,

On vole,on tue,on crie,on pille

Tout celá se passe en famille

Ah! L'on s'amuse en Portugal!




Le Figaro, 23 de Maio 1870

“ O moderno principio social de Portugal que descobri em relação ao sumário desta carta é o seguinte «trabalhar o menos possível e ganhar dinheiro o mais comodamente possível».

É em virtude deste principio que vemos surgirem e florescerem em Portugal tantas casas bancárias e de jogo, que vemos tentar tantas especulações arriscadas e temerárias-como as das minas- tantas industrias honrosas como os montepios, rebatedores e agiotas, as mil encarnações de Shylock, e os pequenos batalhões dos pequenos capitais do Sr. de Rothschild, em febril actividade.

Não é negocio de pequena monta, penetrar em algumas dessas instituições sociais e morais; nem todos teriam coragem para isso. Tenho-a eu porque me dá a afeição por este heróico e bom país, que desejaria ver como eu o sonho.




Há uma coisa que é difícil acostumar-nos neste país, e contudo é forçoso aceita-la sob pena de nada compreendermos do que aí se passa, que é o desacordo que existe entre as leis e os costumes: As leis estão de um lado e os costumes de outro; e para se dizer a verdade, as leis são como teias de aranha de que os costumes se riem, que permitem que subsistam, como que por amor aos contrastes, e que destroem logo que se tornam incomodas.

Existe no Código Penal português um artigo que proíbe formalmente os jogos de azar e que condena a penas severas aqueles que exploram casas de jogo. É o artigo 267.º mas as referidas casas existem e pululam por todo o lado, toda a gente sabe onde se situam.

Um português, a quem manifestei a minha estranheza, revelou-me que é necessário conhecer certos segredos para se perceber como tudo funciona. Muitas pessoas altamente colocadas frequentam essas casas e a sua presença dá-lhes protecção. Algumas têm como sócios gente importante e a mais conhecida é propriedade de um primo, sobrinho ou parente de um ministro qualquer. Outra pertence a um opulento industrial, que dela recebe os lucros. Compreende, portanto, o leitor que, se se tocar numa é fatal tocar noutras. Irritar, descontentar certas pessoas ! Vamos ! Pensam em semelhante desacato? É preferível deixar a gangrena alastrar pouco a pouco e invadir o corpo todo.

As casas de jogo tornaram-se uma epidemia; nas praias balneatórias de Cascais, da Figueira, de Espinho há roletas; em Coimbra há muitas, no Porto contam-se às dezenas.

Tudo isto vive, espreguiça-se e engorda à luz do Sol, sob a protecção da policia, que deveria precisamente cercá-las e fechá-las sempre que fossem denunciadas.

Mas o desprezo pela lei nem sempre é, ainda assim, o filho amado em Portugal, e o código penal, que castiga os jogos de azar, nem sempre é letra morta. Assim se estabelecerdes em Lisboa, numa praça pública o primitivo jogo do ganha-bolos, podereis ter a certeza que a justiça vos mandará para o degredo.




Em Lisboa há uma bolsa que se situa na Praça do Comercio, numa das extremidades, à beira Tejo. Se aquele que perdeu uma fortuna tiver desejos de se deitar a afogar, não precisa de ir longe.

As somas que se perderam na Bolsa de Lisboa no jogo dos fundos são incalculáveis, e nem o comprador nem o vendedor têm com que pagar esses títulos.

Mas há ainda pior : No código penal português existe um artigo,o 273.º, concebido nestes termos :
«Aquele que convencionar a venda ou a entrega de fundos do Governo, ou de fundos estrangeiros, de estabelecimentos públicos ou companhias anónimas, se não provar que ao tempo da convenção tinha esses fundos à sua disposição, ou que os devia ter ao tempo da entrega, será punido com pena de prisão de quinze dias a seis meses, e multa correspondente.

# único : O comprador, se for conhecedor das circunstancias declaradas neste artigo, será punido com metade destas penas»

Bem empregado tempo ! Eis aqui o que é falar. Mas onde está o executor da lei ? É talvez o primeiro a violá-la.

Da Bolsa aos Bancos, o caminho não é longo. Porque se os Bancos não fazem parte da mesma família de negócios clandestinos ou públicos, têm pelo menos as suas afinidades.




Poder-se-ia crer que o comércio de Lisboa e de Portugal, aproveitando-se deles, encontraria um pouco de crédito. Profundo erro ! Os negócios em vez de prosperar vão de mal a pior, especialmente para o pequeno comércio.

Por fim do ano de 1878, e por espírito de imitação, o Banco Ultramarino expiou, como o Banco de Bruxelas, as leviandades de uma péssima administração e o abuso de um guarda-livros, de um exército de empregados e de directores que meteram a mão nas algibeiras...dos outros, postas sob a sua guarda.

No dia imediato ao desastre, o tesouro público punha à disposição do Banco Ultramarino a soma de dois milhões de francos, o dobro dos desvios de fundos.

Aqui temos guarda-livros, tesoureiros, empregados e directores que vão ao banco dos réus responder perante a justiça- se a justiça intervier no caso- por factos que se lhes imputam, e o Governo corre em auxilio do cofre despojado !

Porquê?...Porque razão?...Como é que os dinheiros do Estado têm a ver com uma Sociedade constituída por accionistas de entre os quais alguns, grandes e pequenos, são gatunos?

E que com que direito aqueles que administram os dinheiros públicos, aos quais as Cortes consignaram destino especial, podem aplicá-los a socorrer um Banco em falência ?

Questões importantes em toda a parte, mas que aqui seriam impertinentes.”







(continua)







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A Inocência Perdida

16/4/2014

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                              A  INOCÊNCIA PERDIDA

Em Nova Iorque naquela manhã de 16 de Agosto de 1858, num ambiente de grande entusiasmo e com as ruas engalanadas, soava uma salva de 100 tiros de canhão celebrando o inicio de uma nova era para a humanidade:

Pela primeira vez na história tinha sido trocada entre a Europa e a América uma mensagem telegráfica, tendo a Rainha Vitória enviado ao Presidente Americano James Buchanan umas breves palavras, tão cheias de significado nessa época como na nossa tiveram as de Neil Armstrong : “...a small step for a man...”

A Rainha saudava o feito em exactamente 98 palavras que levaram dezasseis horas a transmitir :

“A Europa e a América estão unidas pela telegrafia ! Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade! Que este seja mais um laço a ligar as duas nações cuja estima reciproca é fundada em valores comuns...”

Ao que o Presidente Buchanan respondeu dizendo : “ Este é um triunfo glorioso por ser muito mais útil para a humanidade do que todos os conseguidos no campo de batalha. Que o telegrafo do Atlântico, sob a bênção divina, possa ser um laço de perpetua paz e amizade entre nações irmãs, um instrumento destinado pela Divina Providencia para a difusão da religião, da civilização, liberdade e força da lei através do mundo !”



Em 1997, cento e cinquenta anos depois, em Islington no norte de Londres, naquela que ficou conhecida como a Rua da Internet , não muito distante onde solitáriamente vou escrevendo estas linhas, que serão lidas por pessoas que não conheço, que nunca vi e de quem nada sei, era levada a cabo uma experiência destinada a responder à pergunta sobre se a nova tecnologia poderia transformar as relações entre as pessoas ou era tão incapaz de melhorar a natureza humana como tinha sido a telegrafia.

O estudo, promovido pela Microsoft, levou a que se instalassem ligações em 27 casas na esperança de que, estudando os efeitos na vida dos habitantes, se fizesse alguma luz sobre a questão fundamental : Seria a Internet uma força para o Bem, ou pelo contrário iria prejudicar a coesão e os laços sociais? Dito por outras palavras : Teria a Net a possibilidade de vir a ser um novo tipo de telefone com infinitamente maiores potencialidades de poder reforçar as comunicações inter-pessoais, ou seria pelo contrário apenas uma diferente forma de televisão, isolando ainda mais as pessoas em frente aos respectivos ecrãs ?


Os primeiros resultados foram um desapontamento para quem augurava o melhor para a nova tecnologia :

“O uso da Internet parece estar ligado a um pequeno, pequeno mas estatisticamente significativo, aumento da solidão e da depressão...”

Mas passado algum tempo a BBC via razões para optimismo, reportando que naquela rua não havia encontrado provas que as pessoas se tivessem isolado, muito pelo contrario, os e-mails criavam laços entre vizinhos inexistentes antes, e um site criado para debater os problemas locais tinha sido o motor para as pessoas se organizarem contra ou a favor de projectos que poderiam afectar a comunidade.


Mas a unanimidade estava longe de ser alcançada : Em 2000, dois professores de Stanford, Norman Nie e Lutz Erbing publicaram um estudo onde afirmavam que quanto mais tempo as pessoas passavam na Net mais se afastavam do contacto com a família e amigos:

“ O e-mail é um meio de manter o contacto, mas não se pode tomar um café ou uma bebida com alguém por essa via, e a Internet é uma poderosa força que reduz a nossa vida social muito mais do que o automóvel e a televisão tinham feito antes.”


Mas a perplexidade continuava e a indecisão sobre se a Net era um bem ou um mal não parecia ter fim:

Numa experiência realizada em Toronto, muito semelhante à de Islington , numa zona que passou a ser conhecida como “Netville”, onde apenas um terço dos moradores não estava conectado, os resultados foram notáveis pois permitiram comparar com rigor os comportamentos de ambos os grupos: Descobriu-se que em média os residentes que usavam a Net conheciam o triplo dos nomes dos vizinhos que aqueles que não a usavam, e que também se visitavam mutuamente muito mais vezes. Estes resultados foram apresentados como a prova final que a net resultava afinal num reforço das ligações entre as pessoas.



Porém hoje, tantos anos passados, as opiniões continuam divididas e com tantas noticias sobre hacking, roubos de identidade, cyberbullying, acesso a contas bancárias supostamente invioláveis,etc , mesmo os mais indefectíveis defensores da era digital vão admitindo que talvez a criatura tenha escapado ao controle do criador.

Em média cada habitante do Reino Unido tem 26 contas de Internet, desde as bancárias às de e-mail, sites sociais, on line shopping, Skype, PayPal, etc. Isto criou a necessidade de saber é o que fazer no caso da morte do titular, e rapidamente surgiu a Cirrus Legacy, que foi apenas a primeira empresa de testamentos on-line. Esta companhia disponibilizava-se para ser a executora testamentaria dos seus clientes, garantindo que a sua herança digital teria o destino determinado nas respectivas últimas vontades, providenciando o encerramento de todo o tipo de contas, o apagar de fotos, emails, documentos, enfim tudo o que o testador pretendesse que não lhe sobrevivesse e, mais importante ainda , garantir a transmissão ao herdeiro designado de informação que de outro modo seria perdida e lembremos-nos, por exemplo, de passwords em contas bancárias off-shore.


Mas é entre os jovens que os efeitos são mais fortes e as preocupações mais fundas, magnificamente expressas no filme “InRealLife” da realizadora de cinema Beeban Kidron, (Bridget Jones-The edge of reason,Cinderella, e outros) .

Descrevendo o que foi que a levou a pesquisar o impacto que a era digital tinha na juventude, contou ela :


“Há cerca de um ano ao entrar casualmente na minha cozinha, encontrei meia dúzia de jovens em completo silencio, absortos nos seus pequenos ecrans, e foi então que realizei que havia meses que não via um teenager que não tivesse na mão um smartphone ou um computador, e nesse instante decidi realizar um filme sobre o assunto e foi assim que, depois de um ano de pesquisa intensa, nasceu o “ InRealLife”. Essa tentativa de conhecer uma realidade até então para mim desconhecida fez-me passar horas deprimentes em quartos de rapazes enquanto viam pornografia on-line, para depois, ao fazer-lhes perguntas constatar que essas práticas teriam provavelmente deixado marcas indeléveis na maneira como no futuro iriam viver a sua sexualidade; praticamente todas as raparigas com quem falei relataram a enorme pressão social a que estão sujeitas, a obrigação de estarem permanentemente contactáveis, o medo do “unfriendling” (1), o significado de estarem todo o tempo a serem observadas por desconhecidos, da ansiedade constante sobre a imagem que projectam...”


“...os aparelhos que os nossos jovens usam vêm de fábrica com todas funções áudio e visuais ligadas. Cada nova app, website, tweet, caixa de correio, não é mais do que um novo modo de intrusão, e cada intrusão está cinicamente concebida para exigir uma resposta, e cada resposta cria o apetite para uma nova intrusão. Pedir a um jovem que ponha de lado a XBox ou que desligue o computador ou o smartphone, é o mesmo que pedir a um alcoólico que pare de beber.

Por detrás de uma aparência inocente está um mecanismo comercial: Cada inter-acção significa informação , que por sua vez vale uma fortuna. As nossas crianças, que são manipuladas para se tornarem consumidores, admitem em cada vez maior numero que não se sentem capazes de controlar o uso que fazem da Internet. Tudo aquilo que um adolescente faz, diz ou vê, por muito pouco e breve que seja, contribui para a criação de um “eu” virtual que um dia poderá ter terríveis consequências para o seu “eu” real. Quantos de nós poderiam ter sido capazes de conservar as nossas relações e reputações intactas se todas as nossas transgressões, erros e loucuras enquanto jovens, fossem eternamente exibidas na Net ? Quantos de nós aceitariam que todos estes factos da nossa vida pudessem ser comprados e vendidos vezes sem conta durante a nossa existência ? “


“ As companhias que constituem o núcleo da net valem biliões mas, mas ao contrario dos outros ramos do comercio onde se é obrigado a garantir que os produtos vendidos são seguros para o consumidor, estas estão isentas dessa obrigação. Porque razão se permite que os nossos telefonemas, as nossas compras, os nossos apetites sexuais, os segredos de todos nós, sejam livremente transaccionados, por muito óbvio que seja o mal que isso causa?”


“É por termos permitido que certas organizações controlem livremente o mais intimo dos nossos jovens antes que a sua personalidade esteja completamente formada, que estes idolatram simples objectos em vez de adquirirem experiência, que não sabem distinguir entre contacto e comunicação, do que é apenas imagem e não intimidade, do que é rápido mas não responsável.

Para que um adolescente se torne adulto são necessários modelos de comportamento, paciência e prática, e poder simultaneamente experimentar o que é estar só e a vida em grupo. Mas as mãos que nós devíamos segurar estão ocupadas por smartphones.”




(1)- “unfriendling”- Ser-se excluído de participar num grupo de “amigos” virtuais.




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FDR

12/4/2014

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FRANKLIN DELANO ROOSEVELT







DISCURSO NA CONVENÇÃO NACIONAL DO PARTIDO DEMOCRATA

(excertos)




Filadélfia, Pennsylvania

27 de Junho 1936







“...talvez fosse natural ou até humano que os príncipes das novas dinastias económicas, sequiosos de poder, ambicionassem controlar o próprio Governo. Eles criaram um novo despotismo e envolveram-no nas vestes da legalidade. Ao seu serviço novos mercenários tentaram arregimentar o Povo, o seu trabalho e os seus bens. E em consequência disso hoje os cidadãos comuns enfrentam a mesma luta que outrora os revolucionários que libertaram este país travaram.”




“... As horas que os homens e mulheres trabalham, os salários que recebem, as condições a que estão sujeitos, fugiram ao controle do Povo e passaram a ser impostas pela nova ditadura económica. As poupanças das famílias vulgares, o capital das pequenas empresas, o dinheiro posto de parte para a velhice – tudo  que não é deles – passou a ser cobiçado pela nova aristocracia económica.”







“...Um velho Juiz inglês uma vez disse : « Homens na miséria não são livres« . A liberdade requer a possibilidade de ganhar o sustento, de ter uma vida decente de acordo com os padrões da época, o suficiente não só para ir vivendo mas também para ter a  vontade de viver.”







“...Para muitos de nós a liberdade política deixou de ter significado em face das desigualdades sociais. Um pequeno grupo concentrou nas suas mãos o completo controle sobre os bens das pessoas, o seu dinheiro, o seu trabalho – a sua vida. Para demasiados de nós a vida deixou de ser livre ; a liberdade deixou de ser real, aos homens não é mais possível a procura da felicidade.”







“...A aristocracia do poder económico aceitou que era ao Governo que cabia regular a liberdade política ao mesmo tempo que defendiam que a escravatura económica apenas a eles dizia respeito. Permitiam que o Governo garantisse o direito ao voto, mas negavam ao Governo a possibilidade de defender o direito dos cidadãos ao trabalho e a uma vida digna.”







“...Os Governos erram, os Presidentes enganam-se, mas o imortal Dante diz-nos que a Justiça Divina julga de maneira diferente os que possuem um coração empedernido e os que são capazes de sentir compaixão.

São preferíveis os erros ocasionais de um Governo que vive no espírito da generosidade, do que as constantes faltas daquele que age petrificado no gelo da sua indiferença.”







“... Acredito plenamente que apenas o nosso sucesso pode fazer renascer a antiga esperança...não sendo apenas uma guerra contra a pobreza e a desmoralização económica: É muito mais do que isso, é uma luta pela sobrevivência da Democracia...”




Sonhemos que no próximo dia 25 de Abril os portugueses tinham um Presidente capaz , ao proferir palavras tão corajosas como as de Roosevelt, de se por ao lado do Povo que o elegeu. Um sonho apenas.







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Da Filosofia e dos Antepassados

9/4/2014

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            CARTAS A LUCÍLIO

       (epistulae morales ad Lucilium)

                 Lucius Annaeus Seneca

                          (5bc-64ad)




                         DA FILOSOFIA E DOS ANTEPASSADOS




Voltas a insistir comigo que te sentes um zé-ninguém afirmando que em primeiro lugar a natureza e em segundo a Fortuna te trataram mal , apesar de teres sido capaz de te elevar acima da multidão e teres conhecido o sucesso. Se a filosofia tem algum mérito é nisto: Nunca olha para a árvore genealógica de ninguém. Os homens se pudessem regredir até às suas origens saberiam que todos descendem dos deuses.




És um cavaleiro Romano e foi o teu esforço que te promoveu a esse posto; mas há muitos que não ascendem às quatorze fileiras (1) ; A Câmara do Senado não está aberta a todos e mesmo o Exército é escrupuloso na escolha de quem admite no seu seio. Mas ter um espírito integro é acessível a qualquer ; e de acordo com este critério todos nascemos nobres.




A filosofia não rejeita nem escolhe ninguém; a sua luz a todos ilumina. Sócrates não era aristocrata, Cleantes tirava água de um poço e era contratado para regar jardins; A filosofia não encontrou Platão membro da nobreza, foi ela que o tornou nobre; porque então desesperas por te tornares um seu igual ? Todos serão teus antepassados se os mereceres.




Não há nenhum homem cujas origens não tenham sido perdidas pela memória. Platão dizia que todos os reis descendem de escravos e não há escravo que não tenha reis entre os seus antepassados. O correr do tempo, as vicissitudes, tudo misturou e tudo a Fortuna virou do avesso.




Quem é bem nascido ? Aquele que fôr capaz de virtude. Deves considerar que esta é a única coisa que conta, de outra maneira se olhares para o passado distante verás que que não há ninguém cujas origens não sejam anteriores à criação. Desde o começo do universo até ao dia de hoje todos provimos de circunstancias alternadamente humildes e gloriosas.




Não é um pórtico cheio de marmóreos bustos enegrecidos pelo fumo dos anos que nos tornará nobres ; Nenhum dos nossos avós viveu com o intuito de nos deixar a sua glória, nada  que aconteceu no passado é nossa propriedade; é o espírito que nos torna nobres, que nos permite subir muito acima de qualquer começo.




Imagina que não eras um cavaleiro Romano mas apenas um escravo liberto; poderias mesmo assim tornares-te no único homem livre entre aqueles que já livres nasceram. “Como?” perguntarás. Se não distinguires o bem do mal baseado na opinião da populaça. Deves fixar o teu olhar não na origem das coisas mas no fim a que se destinam. Se algo puder contribuir para a felicidade, então esse algo será um bem em si próprio e nada poderá torná-lo numa coisa má. Então porque é que as pessoas erram se todos aspiram a uma vida feliz ? Porque confundem os meios para atingir a felicidade com ela própria , o que faz com que esta fique cada vez mais distante por muito que a procurem.




  Se o fundamento para uma vida feliz é viver-se livre de medos, e se  o segredo dessa liberdade é a inabalável confiança que nada poderá acontecer que não saibamos enfrentar, então essa gente nada mais faz do que arranjar motivos para andar angustiada, e não só carregam esses fardos pela traiçoeira estrada da vida, como se arrastam por ela; e assim cada vez mais se afastam do seu objectivo, como alguém que tendo-se perdido num labirinto começa a correr e quanto mais corre mais perdido fica. Até sempre.







(1)- As quatorze fileiras : Os Imperadores Romanos reservavam nos teatros as primeiras quatorze filas de lugares para os membros da Ordem Equestre dos Cavaleiros.

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Uma abundancia de Catarinas

6/4/2014

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                            UMA ABUNDÂNCIA DE CATARINAS




                    Quanto mais avanço na idade menos acho que tenho o direito a espantar-me com o que vejo, ouço ou leio. È um desejo evidentemente pueril, apenas possível por me esquecer frequentemente que o mundo em que vivemos é realmente um lugar estranho.

Remoendo estes pensamentos veio-me à memória a história do Vigário de Nibbleswicke, contada que foi por Roald Dahl:

Nibbleswicke é uma aldeia tipicamente inglesa, incrivelmente bonita, situada creio no Buckinghamshire: Pouco mais de uma dúzia de cottages à volta da igreja, com a sua típica torre quadrada de estilo normando, a qual constitui com o local Pub “A Raposa Pretenciosa”, The Snooty Fox, o centro da vida cívica da pequena comunidade. Se o nome do Pub causou estranheza, muito vão ter de se espantar num país que possui outros com nomes tais como “O Contribuinte Alegre”, The Jolly Taxpayer, (Portsmouth), “O Molho de Cenouras”, The Bunch of Carrots, (Hereford), “A Mulher Calada”, The Quiet Woman, (Buxton), “O Aluno Cábula” The Skiving Scholar, ( Plymouth), “O Touro e os Óculos”, The Bull and Spectacles, (Staffordshire) e, last but not least, “O Bigode do meu Pai”, My Father's Moustache, (Lincolnshire).

Mas voltando a Nibbleswicke, a sua população é a habitual mistura de funcionários, professores e militares reformados. Nada parecia poder perturbar a paz do lugar nem alterar a equanimidade de quem lá vivia e as conversas mais excitantes não passavam dos comentários sobre o atraso das azaleas em florir, da bonita que estava a Wisteria do Major Thompson, ou o triste que estava a pobre Miss Moneypenny, how disappointed the poor lady is!, por as suas gardénias não estarem nesta primavera up to her expectations!

Mas como disse o mundo é um lugar estranho e Nibbleswicke faz parte dele como se irá ver em seguida:

Tendo sido o antigo pároco transferido, (ou falecido não me recordo bem), a população preparou-se para receber com benevolente expectativa o seu novo vigário sem sonhar o choque que a esperava. Não me interpretem mal, o Reverendo Lee era um jovem desejoso de agradar à sua primeira congregação, compreensivelmente nervoso com a responsabilidade, mas o primeiro sinal que alguma coisa não estava bem aconteceu logo no salão paroquial na sessão de boas vindas quando, para estupefacção geral, o recém-chegado se apresentou como sendo o Reverendo Eel. Ora eel quer dizer enguia, e isso era tudo o que os paroquianos menos esperavam ouvir. Mas pior estava para acontecer e no primeiro serviço religioso, com a pequena igreja repleta de fieis, em vez do tradicional “Let's pray to God” saíu-lhe “Let's pray to dog”! Imaginem o frémito de comoção que percorreu a assistência, e como se não bastasse, na predica final, ao exortar os paroquianos a não estacionarem os carros na vereda de acesso à Igreja, ao dizer “...please do not park in the alleyway...” em vez de park disse krap, o que soa como crap, uma palavra muito feia que designa uma função fisiológica absolutamente impronunciavel.

Os incidentes deste género foram-se sucedendo e a congregação em pânico não sabia o que fazer com o seu Vicar que aparentemente estava raving mad. Este acabando por reconhecer que não estava bem resolveu consultar o médico local, o qual após uma longa observação lhe disse gravemente que padecia de uma raríssima doença sem cura chamada Dislexia Regressiva que fazia com que pronunciasse algumas palavras de traz para diante. A única maneira de contrariar esses estranhos fenómenos seria falar andando às arrecuas.

E assim passou a fazer e em breve os moradores habituaram-se a ver o Reverendo Lee caminhando de costas pelas ruas da vila assim como se habituaram a vê-lo celebrar missa andando da mesma maneira à volta do altar.

E a vida em Nibbleswick voltou à normalidade para satisfação geral !




Eu tinha porém a intenção de ter começado a escrever sobre outro caso, este passado na América, sitio que se sabe ser muito mais propicio a acontecerem coisas invulgares, caso esse que foi relatado por John Green , naturalmente ele próprio também um americano.

Tudo se passa numa pequena cidade do Middwest onde vivia o jovem Colin Singleton, aluno da escola secundária local e unanimemente considerado desde a mais tenra idade como um futuro génio.

No ultimo ano do liceu, Colin, magricela e sorumbático, era na opinião dos colegas um verdadeiro nerd, o que em português talvez se diga tótó, com uma obsessão pela matemática que o levou a subir exponencialmente na admiração dos professores na exacta proporção em que desceu na das raparigas da escola. Na verdade não é muito vulgar que um jovem de dezassete anos apresente um trabalho sobre a Conjectura de Goldbach para em pouco tempo, sem que os professores recuperassem do espanto, apresentar logo outro sobre a Hipótese de Riemann.

Mas o que era realmente extraordinário em Colin Singleton era a sua propensão para ficar perdidamente apaixonado pelas Catarinas, não por nenhuma em particular, mas por absolutamente todas que se cruzassem no seu caminho.

Mal vislumbrava no horizonte uma e o pobre Colin ficava uma espécie de comboio sem travões, possuído por uma paixão cósmica, avassaladora, incontrolável.

As Catarinas essas, tinham reacções que variavam do deixa-me em paz imediato a alguns dias ou semanas de namoro, até recuperarem do espanto e mandarem-no dar uma volta.

Seria fastidioso relatar aqui o que aconteceu com cada ; Por exemplo a Catarina V não estava interessada em rapazes, a Catarina XI disse-lhe secamente que apenas poderiam ser amigos, a VIII acabou com tudo num cinema de um shopping, e finalmente a Catarina XIX esgotou a capacidade de Colin para aguentar tanto desgosto de amor.

E foi então que ele teve o seu momento Eureka e resolveu voltar-se para a Matemática, aquela que nunca o tinha abandonado, que nunca lhe tinha dado desgostos, como a fonte da solução para o seu problema.

Dificeis foram os seus estudos, enormes os obstáculos , inimaginável em dificuldade o tour de force intelectual, para finalmente parecer ter conseguido aquilo que será a sua magnum opus: O Teorema da Previsibilidade Inerente das Catarinas :


                                                     f(x)=D²x²-D




Passará assim ser possivel para Colin calcular caso a caso qual a sua possibilidade de sucesso com as futuras Catarinas,

Mas se a fórmula resultar com elas, porque não resultará também com todas as Marias e Maneis do universo ? E se fôr possivel reduzir o amor a uma simples equação, isso não fará então do mundo um lugar realmente estranho ?

         

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Os Inimigos do Povo

2/4/2014

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                                      Os Inimigos do Povo




Thomas Stockman era médico municipal e delegado de saúde numa pequena cidade da Noruega da qual o seu irmão era presidente da Câmara. Este tinha concebido um projecto grandioso que passaria pelo aproveitamento da fonte termal da localidade, construindo uma luxuoso edifício de banhos capaz de atrair turistas e tirar a cidade do seu isolamento e atraso ancestral.

Mas Stockman descobre que a agua das termas está contaminada:

“ A fonte está envenenada e em vez de melhorarmos os doentes que nos procuram fazemos com que adoeçam gravemente ! Não podemos continuar com esta mentira que causa tanto sofrimento e dor !”

O médico esperava ser visto senão como um herói, mas pelo menos como alguém que procurava dignificar a vida pública, um defensor da decência e do bem comum.

Mas o irmão presidente da Câmara descobre que encontrar uma nova captação seria extremamente caro e por isso declara não estar de acordo com as conclusões do relatório do irmão médico, e que portanto para ele a qualidade da água das Termas é perfeitamente aceitável. Na Postura Municipal que faz publicar afirma que o problema levantado em tão funesta altura “Não é apenas de natureza cientifica e tem implicações económicas e técnicas que devem ser levadas em consideração“.

O jornal local, a administração da empresa dos banhos e os homens de negócios unem-se contra o médico que acusam de ignorância, insensatez e de propositadamente tentar prejudicar a economia da cidade propalando noticias infundadas e falsas.

Este , seguro da sua razão, reafirma a bondade dos factos que apresentou e recusa retratar-se. É então declarado inimigo público, vê-se ameaçado, a sua casa apedrejada e não lhe restando alternativa deixa a cidade e emigra.







Este pequeno resumo da peça de Henrik Ibsen “O Inimigo do Povo” lembra irresistivelmente o que se passou em Portugal com a publicação por umas dezenas de personalidades de um Manifesto defendendo a renegociação da Divida Pública.

A reacção do regime foi de rancor tratando de vilipendiar os autores que foram chamados de “essa gente” pelo Primeiro-Ministro e os seus próceres não fizeram menos do que os acusar de serem traidores à Pátria.

Cavaco, essa lamentável personagem, demitiu sumariamente dois dos seus “conselheiros” que ousaram ter opinião própria, revelando o facto extraordinário de nos dias de hoje em Portugal para se ser conselheiro presidencial é condição necessária ter a mesma opinião que o aconselhado.

Finalmente o Grémio dos patrões não reagiu com menos furor contra dois dos seus membros que também eram signatários do referido manifesto os quais, além de serem genericamente acusados do mesmo crime de traição à Pátria, levaram com o labéu provavelmente para os patrões muito mais grave de serem também traidores à classe.




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