CAR BOOT SALES
Essa máquina infernal dá pelo nome de “Car Boot Sales”, e é na realidade uma espécie de desporto ou cerimónia ritual em que participa uma imensa multidão e que consiste na frenética compra, venda ou troca de centenas de milhares de coisas inúteis, actividade a que os participantes se entregam com devoção e deleite , ou não tenha sido o próprio Napoleão a dizer que os Britânicos eram um povo de lojistas, vocação demonstrada em todo o seu esplendor nesta prática dominical.
A coisa consiste em meter no porta-bagagem do carro tudo aquilo que não se quer, com a intenção de vender ou trocar essas coisas por muito velhas, partidas, feias e inúteis que sejam, por outras igualmente feias, velhas e inúteis, num moto-continuum que garante a sobrevivência deste comércio, para depois rumar para um dos muitos lugares onde já terão chegado outros milhares de maníacos, todos exactamente com o mesmo propósito.
Mesmo nas zonas urbanas, em parques de estacionamento junto a estações de comboio ou Metro, onde as pessoas em dias de trabalho deixam os carros e que estão convenientemente desertos ao Domingo, se pode encontrar este fenómeno.
Mas se o leitor o quiser experimentar na sua integral pureza, então terá de se dirigir a um parque ou a um campo aberto dos que abundam mesmo não longe do centro da cidade, e com sorte nesse dia não haverá sol mas choverá a cântaros, e assim vestindo a sua capa impermeável e de botas de borracha calçadas conhecerá na sua total plenitude esta verdadeira instituição britânica.
E se, depois de umas horas neste exercício, ao chegar ao hotel enregelado, molhado, enlameado, cansado de arrastar atrás de si um saco cheio de quinquilharias, ao saborear uma merecida cup of tea se sentir invadido por um cálido sentimento de bem-aventurança, é porque então no intimo é mais British que o Príncipe Filipe e o melhor é mudar-se para cá.
Eu como calculam abstenho-me destas actividades, mas já a minha gentil outra metade é adepta fervorosa, e mal se aproxima o fim de semana ela e uma amiga, (sim, porque nestas coisas é sempre útil contar com um cúmplice), começam numa estranha actividade com a entrada e saída de caixotes cujo destino é o sótão onde decorrem secretos conciliábulos. Prudentemente há muito que lá não vou, porque há choques a que a minha idade não aconselha, e enquanto este frenesim dura tento passar despercebido até que chega o fatídico Domingo e ei-las, ainda mal amanheceu, a saírem chilreantes rumo ao seu passatempo preferido.
Eu confesso que no passado não tive em devida conta as susceptibilidades da minha encantadora outra metade em relação a este assunto e fui talvez demasiado mordaz nos meus comentários, tendo por isso sofrido duras penas de exílio interno.
Por exemplo há tempos entrou-me em casa um pequeno móvel carcomido e completamente desconjuntado, cujo destino foi ser plantado no meio do jardim e ser sujeito a severos tratamentos que pelo cheiro incluíam ácidos, decapantes, esfoliantes, etc, mas que tiveram um efeito inesperado naquilo que eventualmente ainda mantinha aquela ruína numa só peça e um belo dia, ao espreitar pela vidraça, o que vi foi o que parecia ser um pequeno monte de lenha.
Temos por vezes momentos infelizes, e foi num deles que fiz um pequeno comentário en passant sobre a pena de não termos uma lareira para aproveitar a madeira, o que teve como consequência ter passado o que me pareceu uma eternidade a comer pizzas aquecidas no micro-ondas e a andar pela casa feito uma alma penada.
Outra consequência foi que naquele fatídico lugar a relva ter ficado completamente queimada e por muito que eu tenha cavado, re-semeado, regado e adubado várias vezes, e nem sempre por esta ordem, aquela conspicua mancha manter-se como se lá tivesse estado um reactor de Chernobyl ou aterrado uma nave espacial daquelas que vêm nos filmes americanos.
Ainda não há muito tempo, noutro Domingo, estava eu sentado na minha poltrona entregue à leitura do Observer e gozando os momentos de paz que antecedem a tempestade, quando ouvi a porta da rua bater o que me fez passar instantaneamente de um estado de bonomia para um de alerta total. Bem me enterrei na poltrona, bem me escondi atrás do jornal que ainda por cima é um broadsheet, de folha grande, mas tudo foi em vão e seguiu-se mais ou menos este diálogo:
-Do you like it ?
“It” era um objecto rectangular feito numa pedra esverdeada onde vinham montadas umas espécie de colheres em metal lavrado de cor amarelo berrante, o que provavelmente já terão adivinhado, era o que se chama um porta cachimbos. Ora na família não fumamos, muito menos cachimbo, e nem desde que a memória alcança sabemos de amigos ou vizinhos que os usem e tampouco, tanto quanto me recorde, conhecemos alguém que conheça alguém que o faça. Por instantes fiquei completamente estupefacto, speechless, mas rapidamente me recompuz:
-Oh yes dear, I think is lovely !
-But do you really, but really, like it ?
Uma pausa, um longo olhar perscrutador pronto a transformar-me numa estátua de sal. Mantenho-me firme:
- But of course I do darling ! It's absolutely beautiful !
E dessa vez escapei.