A Gazeta do Middlesex

HIGHGATE

25/10/2014

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                                                                         HIGHGATE


A norte de Londres numa das zonas mais prestigiadas e caras  está Highgate o mais antigo e famoso cemitério da Capital  .

Inaugurado no inicio do Séc. XIX é constituído por duas partes separadas por uma longa estrada e há muito que foi decidido limitar a manutenção do grande espaço ao minimo possivel, tornando-o assim num verdadeiro oasis de vida natural no meio da cidade .

A metade mais interessante é sem dúvida a Ocidental, e reflecte ter sido contruída em pleno romantismo com réplicas das necrópoles da antiguidade, desde as egipcias às romanas, com as suas catacumbas, mas o abandono propositado torna a visita, que é verdadeiramente fascinante, apenas possivel em grupo e com marcação prévia.

Já a parte Oriental está diáriamente aberta ao público e não faltam visitantes, a maioria dos quais procura apenas ter uns momentos de tranquilidade, mas há quem vá em romaria ao túmulo de Karl Marx, o mais famoso inquilino do cemitério .

Talvez seja mais uma das muitas excêntricidades que abundam neste país, pois só um excêntrico quererá ir visitar aquela campa quando não se sabe o que estará mais morto, se o ocupante se a sua ideologia .

Mas se Marx está morto, Hayek e Milton Friedman estão bem vivos naqueles que continuam a defender as suas teorias afirmando que quanto menos os Governos taxarem os ricos, quanto menos defenderem os direitos dos trabalhadores, e quanto menos redistribuirem a riqueza, melhor será para todos. O resultado dessas politicas está à vista e não é possivel negar que a dinamica da acumulação de capital, que é a sua directa consequencia, leva à concentração da riqueza nas mãos dum numero cada vez mais restrito de pessoas e ao empobrecimento de todas as outras.

Não há muito tempo Joseph Stiglitz escrevia um artigo na Vanity Fair onde, glosando a famosa declaração da Constituição dos EUA , (um Governo do Povo, para o Povo e pelo Povo...) , afirmava que se tinha tornado num Governo do 1%, para o 1% e pelo 1% dos americanos, aqueles que detém a maior fatia da riqueza do país.

Hoje ler jornais é conhecer todos os dias novas práticas de fraudes , evasões fiscais, abusos de confiança e enriquecimentos ilicitos, ao mesmo tempo que se lê, por exemplo, que em 2015 mais de metade das crianças do RU terá descido abaixo do limiar da pobreza, enquanto que em 2012 os 100 mais ricos terão visto aumentar as suas fortunas em $ 241 biliões de dolares , valendo agora $1.9 triliões , ou seja o equivalente ao PIB da Grã-Bretanha. Nos EUA a riqueza dos Walton , herdeiros do Wal-Mart, é estimada em $ 70 biliões, exactamente o mesmo que possuem os 30% dos americanos de menores recursos, e a Forbes anuncia que o mexicano Carlos Slim continua a ser a pessoa mais rica do universo, com um pé de meia de $ 79 biliões, o que é certamente obsceno se considerarmos a pobreza em que vivem a maioria dos seus compatriotas.

Números são apenas isso, números, e não falam dos incontaveis dramas pessoais que a crise vai causando . De pouco vale referir a sinistra corrida entre a Espanha e a Grécia para apresentar a maior taxa de desemprego, ( que na Andaluzia é de 40%, e onde 67% dos jovens não têm trabalho), ou lembrar as dezenas de milhar de habitações que os bancos espanhois já reaveram por incumprimento.

Aliás ser jovem hoje é ser excluído de tudo aquilo que as gerações precedentes tinham como garantido : Ter trabalho , casa própria, constituir familia, tudo se tornou numa miragem e , mais trágico ainda, acabou a esperança de um dia poderem viver num mundo melhor. Em Portugal, o que Governo oferece aos jovens, numa acto de revoltante  cinismo e hipocrisia, é a emigração como  unica opção, isto se não se quiserem resignar a um futuro de insegurança, baixos salários, dívidas  e permanente angústia, aconselhando-os a procurarem lá fora uma alternativa garantindo que precisamente alternativa é o que não há para eles em Portugal .

Portanto algures em Highgate, talvez não muito longe do túmulo de Marx, existirá uma campa rasa que passa despercebida, cavada que foi pelos Kapos da Troika, e onde jazem as esperanças das novas gerações.









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                                                   PAUSA

Para os meus indefectíveis leitores, merecedores que são de um justo descanso. Mas dentro de cerca de dez dias reincidirei na escrita; logo a paz será curta para aqueles que tão generosamente me aturam.

Até breve!

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Da Partilha do Saber

22/10/2014

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                                             CARTA A LUCÍLIO

                                     (epistulae morales ad Lucilium)
                                                 Lucius Annaeus Seneca
                                                            
(5bc-64ad)


                                               DA PARTILHA DO SABER


Sinto, meu caro Lucilius, que não faço apenas progressos mas que me transformo interiormente, e no entanto não posso garantir que em mim não reste nada que não necessite ainda de mudança. Muito tenho que deve ser reduzido, melhorado ou mesmo eliminado. Mas esse facto, o do meu espírito ser capaz de reconhecer falhas que antes ignorava, é prova que mudou para melhor. É o que acontece com certos doentes que são elogiados quando finalmente reconhecem que não estão bem.

Gostaria de poder partilhar contigo esta minha súbita metamorfose. Se fosse capaz, isso fortaleceria a minha fé na amizade que existe entre nós, amizade tão verdadeira que que nada a poderá destruir, preparados como estamos para nela e por ela morrer. Poderia citar-te exemplos de pessoas a quem não faltam amigos, mas que desconhecem o que é a amizade, o que não pode no entanto acontecer entre aqueles que possuem as mesmas convicções, numa aspiração comum por tudo o que é digno. E porque não poderia acontecer? Porque essas pessoas tudo partilham, especialmente as suas derrotas.

Não imaginas as melhoras que diariamente sinto em mim. E quando dizes “Dá-me a conhecer essas ideias que te fizeram tão bem” fica sabendo que nada me agradaria mais, porque grande parte da felicidade que sinto em aprender é o poder depois ensinar; nenhum conhecimento, por muito útil e valioso que fosse, me daria gosto se se destinasse para meu único beneficio. Se a sabedoria me fosse dada com a condição expressa de não a divulgar, eu rejeitaria a oferta. Não há felicidade em possuir algo se não houver com quem partilhar.

Vou enviar-te os livros, e para te poupar tempo na procura das passagens mais interessantes vou sublinha-las, poderás assim encontra-las rapidamente.

No entanto o contacto pessoal e a intimidade diária seriam para ti mais benéficos do que apenas a palavra escrita. Deves ir à cena da acção porque os homens têm mais fé no que vêm do que no que lêem, e porque o caminho é mais longo e difícil se se percorre seguindo apenas o que está escrito em vez de observar o exemplo pessoal. Cleantes(1) não seria a imagem perfeita de Zeno (2) se tivesse ouvido apenas as suas lições; ele partilhou a sua vida e pôde ver como ele vivia segundo os princípios que defendia. Platão, Aristóteles, e muitos outros filósofos que iriam seguir diferentes caminhos, beneficiaram mais do carácter de Sócrates do que das suas palavras. Não foi por pertencerem à Escola de Epicuro, mas por terem vivido sob o mesmo tecto que Epicuro, que fez com que Metrodorus, Hermarchus e Polyaenus (3) se tornassem grandes homens. E no entanto não desejo que estejas a meu lado apenas para teu bem mas igualmente para o meu, pois seria benéfico para ambos.

Chegou porém a altura de terminar com a minha observação habitual, desta vez com uma reflexão de Hecato (4): “Que progressos terei feito?: Comecei a ser o meu melhor amigo.” Esse é realmente um grande passo e podes estar certo que uma pessoa assim nunca estará só e que será sempre amigo de todos. Até sempre.




(1)- Cleantes, filosofo grego (Bc 232) sucessor de Zeno na Escola dos Estóicos(n.t)

(2)-Zeno , filosofo grego fundador da Escola dos Estóicos.(n.t.)

(3)-Metrodorus,Hermarchus e Polyaenus, filósofos da Escola de Epicuro.(n.t.)

(4)- Hecato de Rodes, filosofo grego da Escola dos Estóicos.(n.t.)




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Black Card

18/10/2014

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                                         BLACK CARD



Foi a American Express que no final dos anos noventa lançou um novo tipo de cartão de crédito que ficou conhecido como “Black Card.”

Destinado aos super-ricos em breve se tornou numa lenda devido à sua exclusividade, alto custo e por ter um plafond ilimitado.

Rapidamente muitos outros se lhe seguiram com nomes vários e emitidos em muitos países, mas todos partilhando a mesma distintiva cor negra e todos identificando o portador como pertencente ao clube dos milionários.

Por razões óbvias a lista dos titulares foi sempre confidencial, o que levou a que se alargasse a designação “Black Card” a todos os cartões de crédito que além de negros na cor tivessem sido atribuídos clandestinamente como paga de serviços ou favores e que deveriam ser mantidos em segredo.

Foi o caso de uma entidade bancária espanhola, a Caja Madrid/Bankia que resultou da fusão de várias caixas de crédito provinciais que tinham falido tendo sido por isso nacionalizadas.

O jornalista do “El País”, Xavier Vidal-Foch, foi o autor do artigo recém publicado e que a seguir se transcreve e que os leitores em Portugal irão ler talvez com um sentimento de deja-vu .

Na tradução optou-se por manter o nome original de “tarjeta negra”, mais autentico e também inteiramente português.

Que les guste !







                                  A telenovela das tarjetas negras desmonta três mitos

 
  

 O primeiro, a do Governo plutocrático, segundo o qual é melhor que sejam os ricos a governar porque não necessitam de corromper-se devido ao principio da auto-limitação da ganancia pelo lucro. Coisa rebatida pelo outro principio, dito da “acumulação infinita”- vulgarmente conhecido por “o dinheiro atrai dinheiro”, que demonstra a “tendência que leva o capital a acumular-se e a concentrar-se em porporcões infinitas, sem limite natural”, como enunciou Tomas Piketty (O Capital no Sec. XXI)

 
Segundo mito caído: A presunção que a direita sempre gere melhor a economia que a esquerda. Não foi assim com a CajaMadrid, criada para ser uma grande corporação pelo progressista Jaime Terceiro e arruinada pelo conservador Miguel Blesa. Na mistura dos consultores “black card”, figuravam Populares, (do Partido Popular-n.t.), socialistas, esquerdistas e sindicalistas- foram estes que os políticos foram demitindo pouco a pouco- Mas também figuravam figuras gradas do patronato: O réu Gerardo Diaz-Ferrán, o multi-suspeito chefe da CEIM, (Confederação do Patronato e Industriais de Madrid-n.t.), Arturo Fernandez- as suas despesas sociais, os seus desmaios fiscais, os seus cúmplices nas fraudes na formação profissional- Alejandro Couceiro, Miguel Corsini, Javier López... a falta de vergonha de alguns é demolidora.
Vejamos : Arturo devolve parte do dinheiro da tarjeta negra alegando que tudo era legal. Mas uma coisa ou outra: Se era legal e conforme, porquê devolve-lo ? E se não era então porque o aceitou?

Estes eram alguns dos economistas neo-liberais que era suposto controlarem os abusos e acabaram beneficiando deles.

 
 Terceiro mito destruído: Um alto nível de rendimento e educação são uma vacina contra as irregularidades, a fraude fiscal e a corrupção. Nada mais errado; ter informação não equivale automaticamente a possuir conhecimentos, conhecimentos não significam o conhecimento, este não implica saber e saber não é sinónimo de sabedoria. Nem de ética.

 
 A prova está em dois exemplos da lista negra : Os notáveis economistas neo-liberais Alberto Recarte e Juan Iranzo, personalidades públicas e implacáveis polemistas, que até agora tinham conseguido esquivar-se ao protagonismo e esfumar-se entre as sombras. Recarte é o economista de cabeceira de José Maria Aznar, patrono da sua fundação FAES, (Fundación para el Analisís y Estudos Sociales-n.t.), quem presidiu à Libertad Digital (Jornal online de tendência conservadora-n.t.), (de cujos sócios foi advogado como consultor da Caja) e também consultor do Instituto de Empresa (IE).

Não se explica nem se demite; será que pensa que aos cachorros da burguesia madrilena convém doutorarem-se em opacidade fiscal ? (vulgo: dinheiro negro).

 O mesmo se passa com Juan Emílio Iranzo Martín, o ainda decano-presidente do Colégio de Economistas madrileno, académico da Real de Doctores, ( Academia de carácter cientifico, técnico e humanista-n.t.) e professor de finanças no CUNEF, (Colégio Universitário de Economia e Finanças-n.t.)

Que culpa têm os seus economistas , doutores e alunos, pelo ágil uso que fez da sua tarjeta negra, ( fala-se em 46.800 euros) ?

 
Porque razão devem ser estes casos considerados mais graves ? Porque um professor de Economia não pode alegar ignorância. Por dever de oficio tem de saber que os pagamentos efectuados com um cartão de crédito de empresa e apresentados como “despesas de representação”, ou são isentas de impostos ( por razões ligadas à actividade: transportes, hoteis, refeições) e que devem ser justificadas mensalmente à empresa (e se esta não o exige, cheira a aldrabice), ou são rendimentos que devem ser declarados às Finanças como não isentos de impostos. E deve também saber que é muito invulgar que aos consultores não executivos seja disponibilizado um cartão de crédito desse tipo.

 
O caso do tele-pregador Iranzo Martin é ainda mais grave. Ele era membro da Comissão de Controle da Caja, um dos que “ tem uma tarjeta black Visa com isenção fiscal” segundo se lê num correio interno proveniente do topo da direcção dessa entidade e que foi reenviado a Blesa, (Miguel Blesa, Presidente da CajaMadrid/Bankia e acusado de ter provocado a ruína da instituição-n.t.).

O chefe dessa Comissão, Pablo Abejas, atingiu o êxtase da desfaçatez quando declarou que “as davam, (as tarjetas negras), a toda a gente” e que ele nunca “tinha tido funções executivas”(El País, 3 de Outubro). Pois se ele não era mais do que o controlador-chefe e que tinha como ajudante Iranzo. Ele, Pablo Abejas, era quem tinha como missão “zelar para que a gestão do Conselho de Administração fosse feita com a maior eficácia e precisão” e de acordo com o espírito da Lei (art. 21- LORCA 1985).

Ou seja: Os controladores não se controlavam a si próprios !

 Iranzo ainda é mais notável: Será que segue as mesmas práticas nos Conselhos, (de administração), de que é membro, inclusivamente na firma de auditoria Capgemini-Ernst&Young – cuja acção fiscalizadora passou despercebida no caso Gowex ( Companhia IT fornecedora de wi-fi, cujo valor bolsista era de 1.9 biliões de euros antes de subitamente implodir em Julho, quando foi descoberto que o seu Presidente, Jenaro Garcia, tinha falsificado toda a contabilidade desde pelo menos 2005-n.t.).

 
 Será que o valor que inculcou nos jovens empresários da CEOE, ( Confederación Española de Organizaciones Empresariales-n.t.) foi o ódio à transparência fiscal durante os quinze anos (1996-2011) em que esteve à frente do Instituto de Estudios Economicos, e do qual foi demitido por Juan Rosell (Presidente dessa Confederação desde 2011-n.t.); essa verdadeira sementeira de neo-liberais tipo Hayek, de que brotaram ministros e outros patriarcas dessa falsa irmandade.

 
Essa invasão do sector público por ultra-liberais até teria alguma graça se estes não se tivessem tantas vezes banqueteado com as poupanças dos pequenos investidores em dividas preferenciais.

Nauseabundo.








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Baristas & Fashionistas

14/10/2014

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                            BARISTAS  &  FASHIONISTAS




Eu sei que os anos trazem mudança e não serei eu a escrever uma jeremíada pelos dias de hoje, longe disso, mas permitam-me que diga: As coisas estão a ir longe demais !

 
  Quando aqui cheguei senti o que era pertencer a uma espécie de tribo perdida cujos membros, portugueses (poucos), espanhóis (bastante mais), e italianos (a maioria), soltavam lancinantes lamentos pela falta do leite e do mel que corria abundantemente nos países donde tinham partido e sem terem a esperança que um dia surgisse um Moisés que os guiasse no caminho de volta.

 
  Eu tenho para mim que esse leite e mel bíblicos, cuja descrição vem no Exodus, eram para nós latinos muito prosaicamente o vinho e o azeite. Pondere o leitor o que seria a sua vida sem um e o outro, e se estes fossem para si apenas distantes memórias de uma risonha juventude. O azeite, esse, vendia-se nas farmácias e o vinho, se bebido em vez de cerveja, era sinal de escuros e hostis costumes de meridionais notoriamente pouco dignos de confiança. Mesmo a modesta “bica” era uma raridade, e a informação sobre onde se podia beber era transmitida boca a boca como um código clandestino.

 Da comida nem é bom falar, um deserto completo, e as viagens, caríssimas na época, não permitiam trazer regularmente umas coisinhas da terra para matar saudades. Não tenho dados, penso mesmo que não haverá estatísticas oficiais, mas certamente que haverá uma montanha de chouriças, paios, presuntos e queijos que não escaparam às mãos cruéis dos oficiais da Her Majesty Customs confiscados que foram nas alfandegas.  

  Quanto à roupa, o Marks & Spencer era a verdadeira epitome da sofisticação, onde se gastava dinheiro quando se queria comprar algo bom e sólido e onde nos podíamos vestir da cabeça aos pés sem ofender o sentido da temperança e parcimónia.

 
Mas as coisas mudaram, olá se mudaram, e se  no inicio essa mudança foi lenta logo rapidamente ganhou ritmo, até passar por mim com a velocidade de um Sputnik deixando-me meio atarantado.

  Vejam o que se passou com o café : De beberagem insípida passou à categoria de ambrósia cujos segredos estão apenas ao alcance dos cognoscenti. Por essa cidade pululam as cafetarias, os Caffé Nero, os Café Rouge, os Costa, etc, onde em vez de gente vulgar a tirar a singela bica temos verdadeiros alquimistas que dominam a arte de criarem o perfeito café, ou seja os Baristas.

Já foi há anos mas ainda hoje recordo a humilhação que foi quando, na minha inocência, me abeirei a um desses balcões e pedi um espresso, tendo-me o Barista perguntado com altivez se o que eu desejava era um espresso, um espressino ou um espresso romano? Devo ter corado até às orelhas pois não fazia ideia do que dizer e tartamudeei qualquer coisa até que no impasse me foi servido um qualquer.

Lamento dizer isto, mas como querem que Portugal progrida se no pais ninguém sabe a diferença entre um Caffé Latte, um Latte Macchiato ou simplesmente um Macchiato ? Que abismo de ignorância, que negrume civilizacional é esse que ignora o que é um Affogato, um Antoccino, onde não se sabe escolher entre um Caffe Tobio e um Caffe Marocchino ?

 Com o vinho passou-se algo semelhante :

  De ignorado tornou-se num must para quem deseje demonstrar alguma evolução desde que os neandertais caminharam por estas ilhas, e com o zelo dos recém-convertidos os Ingleses tornaram rapidamente a nova moda numa obsessão que, metafóricamente bem entendido, não deixa de espantar aqueles que começaram a beber tinto no seio materno:

Agora bebe-se vinho a qualquer hora do dia e não se admire o leitor se ao meio da tarde ao visitar amigos lhe seja oferecido em vez do tradicional chá um copo de tinto como sinal de sofisticação.

Mas o que me irrita para além do que sou capaz de descrever é a mania de falar das várias castas como quem fala dos filhos :

- O meu Malbec é um pouco tímido de inicio, mas se tivermos paciência torna-se loquaz e encantador !

- Ah pelo contrário o meu Viognier é ao principio de uma impetuosidade difícil de controlar e é preciso acalma-lo e deixar que descanse um pouco, mas depois fica adorável !

  Às vezes fazem-se tentativas para me arrastar para a discussão :

- Manuel, não acha o Grenache demasiado taciturno, intratável mesmo, e que o Mourvèdre é uma companhia muito mais simpática ?

Ao que eu resmungo:

-Possibly, possibly, e daí não passo, o que resolve a maioria das situações.

  Uma vez, exasperado para além do imaginável, fui ao ponto de dizer que em Portugal, (país sobre o qual sou tido como sendo uma indisputável autoridade), existia uma casta que dava no mesmo cacho uvas brancas e tintas, daí o sucesso do Mateus Rosé, o que deixou a audiência boquiaberta para meu intimo consolo.

  
A roupa, ou melhor a compra da roupa, tornou-se noutro motivo de ansiedade e se o leitor não quiser ser considerado como sendo uma forma de vida primária, ao nível das amibas ou paramécias, então tem de ser fashion conscious, ter a noção da moda, por outras palavras tem de ser cool.

Nos media, nas proprias lojas, pontificam os novos gurus da moda, os fashionistas, de cujo polegar depende o veredito se o leitor pertence ao mundo dos vivos ou se escapou à guarda do Cerberus e anda cá por cima quando já não devia.

Não há muito tempo decidi oferecer à minha mais significativa metade um casaco em caxemira, daqueles que de serem tão bons que se podem deixar em testamento às futuras gerações. Como grandes ocasiões impõem grandes decisões, e não sendo eu pessoa para meias medidas, e lá fomos em romaria até Old Bond Street onde resolvemos visitar uma das lojas, daquelas que ao entrar nos dá a sensação de termos penetrado no sanctum sanctorum de um antigo templo. Chamou-nos à atenção um colete  na mais fina e opulenta dessa lã, de cor pérola creio, e  que não lhe podia ficar melhor . Disfarçadamente vi o preço da etiqueta e confesso que senti um estremecimento: Nos meus tempos comprava-se um carro com aquele dinheiro mas, noblesse oblige, mantive-me imperturbável.

Estávamos nós nisto, quando se aproximou o fashionista de serviço, um personagem de sexo indefinido vestindo com o que me pareceu ser um cruzamento entre arlequim e Cardeal Richelieu: Levámos, como calculam, alguns segundos a recuperar-nos do espanto e quando timidamente demos conta da vontade de comprar a peça este, de mão na anca e de braço levantado, num requebro próprio de exorcismo, num teatral vade retro, exclamou:

-”No! Absolutely not!! You don't understand!” Aquilo que se veste tem de ser uma declaração! A statement ! A personalidade de quem usa tem de fluir através da roupa, “You must tell the world who you are ! And Madam I am sorry to say, but this is completely mute ! 

  A minha mais encantadora metade conhece-me de ginjeira, olá se conhece, e antes que eu tivesse tempo de dizer ao fashionista onde podia meter a declaração, arrastou-me dali para fora.

Acabamos comprando praticamente a mesma coisa no Debenham's por uma fracção do custo, e como dias não são dias deu para tomarmos chá no Ritz em Picadilly e ainda sobrou para pagar um dos bilhetes para Faro, aproveitando a promoção de inverno da Easyjet.

Portanto tudo acabou em bem, ou seja per aspera ad astra. Mas lá que custa, custa.





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Bombardeemos todos

10/10/2014

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                                                                                              George Monbiot




                                    BOMBARDEEMOS TODOS

Bombardear o mundo muçulmano- todo ele- para salvar o seu povo. Não será este certamente o único caminho moralmente consistente? Porquê destruir apenas o Estado Islâmico quando o governo Sírio matou e torturou tanta gente? Este não era afinal o imperativo moral de há apenas um ano atrás? O que terá mudado?

 Porque não aniquilar também as milícias Shiitas no Iraque? Uma delas em Junho escolheu ao acaso 40 pessoas nas ruas de Baghdad e assassinou-as por serem Sunitas (1). Outra em Agosto (2) massacrou mais 68 numa Mesquita. Elas falam abertamente numa “limpeza” e no “apagar” (3) dos Sunitas logo que o Estado Islâmico seja derrotado. Um destacado político Shiita avisa, “estamos em vias de criar grupos radicais de al-Qaida Shiitas que ultrapassem em radicalização a al-Qaida Sunita.”(4)




Que princípios humanitários impõem que não prossigamos? Em Gaza este ano 2.100 Palestinianos foram massacrados, incluindo gente que se tinha refugiado em escolas e hospitais. Não exigirão essas atrocidades que se lance uma guerra aérea contra Israel? E qual será o fundamento moral para não aniquilar o Irão? Mohsen Amir-Aslani foi enforcado nesse país por pretender fazer “inovações na religião”, (tendo sugerido que a história de Jonas no Alcorão era meramente simbólica e não literal) (5). Não deveria este caso provocar uma acção humanitária vinda dos céus? O Paquistão suplica por merecer as bombas amigas: Mohammed Asghar um cidadão Britânico idoso sofrendo de esquizofrenia está, como outros blasfemos, aguardando execução por ter afirmado ser um profeta sagrado (6).




E não será um dever urgente destruir a Arábia Saudita? Só este ano foram aí decapitadas 59 pessoas por crimes que iam desde adultério à bruxaria (7). Desde há muito que esse país é uma ameaça muito maior que o IS agora representa. Em 2009 Hillary Clinton afirmava num memorando secreto que “A Arábia Saudita continua sendo uma importante fonte de financiamento da al-Qa'ida, dos Taliban e de outros grupos terroristas”(8).

Em Julho , o antigo Chefe do MI6, Sir Richard Dearlove, revelou que o Príncipe Bandar bin Sultan, até então dirigente do serviço de informação Saudita, lhe tinha afirmado: “Não faltará muito tempo para que no Médio Oriente se ouça dizer literalmente 'Que Deus proteja os Shiitas'. Mais de um bilião de Sunitas estão fartos deles”(9). O apoio dado pelos Sauditas às milícias radicais Sunitas actuando na Síria enquanto Bandar desempenhava esse cargo é tido como sendo responsável pela rápida expansão do Isis (10,11). Porquê atacar os subalternos e poupar o quartel general?




As razões humanitárias apontadas no Parlamento (12), (Câmara dos Comuns-n.t.), se aplicadas com consistência poderiam ser usadas para arrasar todo o Médio Oriente e o Ocidente da Ásia. Dessa maneira poderíamos acabar com o sofrimento humano e libertar esses povos do vale de lágrimas em que vivem.

Talvez seja esse o plano: Barack Obama bombardeou até agora sete países de população maioritariamente muçulmana (13), justificando cada caso como sendo devido a um imperativo moral. O resultado, como pode ser visto na Líbia, Iraque, Paquistão, Afeganistão, Yemen, Somália e Síria, e não foi a erradicação dos grupos terroristas, dos conflitos, caos, morte, opressão e tortura. O Mal não foi varrido da face da Terra pelos anjos de destruição ocidentais.




Agora temos um novo alvo e uma nova razão para fazer cair misericórdia dos céus, com iguais possibilidades de sucesso. Sim, as práticas e os objectivos do Isis são revoltantes. Mata, tortura, aterroriza e ameaça. Como Obama afirma, é uma “organização de morte”(14). Mas é apenas uma das muitas que existem. E, pior que tudo, uma “cruzada ocidental” parece ser exactamente aquilo que deseja (15).




Os bombardeamentos de Obama já fizeram com que o Isis e a Jabhat al-Nusra, uma milícia rival pertencendo a Al Qaeda, se unissem (16). Mais de 6.000 novos combatentes aderiram ao Isis desde que estes ataques começaram (17). São exibidas as cabeças das vitimas em frente às câmaras de televisão como isco para os aviões de guerra. E os nossos Governos são tão estúpidos que o engolem.




E se os bombardeamentos tiverem sucesso? Se- e é um grande se- ele fizer pender a balança contra o Isis o que acontecerá? Começaremos de novo a ouvir noticias sobre os esquadrões da morte Shiitas e sobre o imperativo moral que será destrui-los também – e todos os civis inocentes que estejam no caminho. Os alvos mudam, a política não. Seja qual for o problema a resposta é sempre igual: Bombas. Em nome da Paz e da preservação da vida os nossos Governos levam por diante uma guerra eterna.




Enquanto as bombas caiem, os nossos Estados têm relações amistosas e defendem outras organizações de morte. O Governo Americano- apesar das promessas de Obama- recusa-se a publicar o relatório de 28 páginas do Joint Congressional Inquiry, (Comissão de Inquérito do Congresso dos E.U.A-n.t.), sobre o 9/11 que documenta a cumplicidade da Arábia Saudita no ataque (18). No RU, em 2004, o Serious Fraud Office, (SFO- Organismo oficial que investiga casos de corrupção-n.t.), começou a investigar pagamentos maciços de luvas pela BAE, companhia britânica de armamento, a ministros sauditas e seus intermediários. Quando provas importantes estavam prestes a ser divulgadas, Tony Blair interveio e suspendeu a investigação (19). O maior alegado beneficiário seria o acima mencionado Príncipe Bandar. O SFO procurava esclarecer se este teria recebido, com a aprovação do Governo Britânico, um pagamento secreto de 1 bilião de Libras feito pela BAE, tal como se suspeitava(20).




E isto continua. No numero da semana passada a revista Private Eye, ( Publicação satírica quinzenal cuja especialidade é a denuncia de irregularidades e escândalos do establishment político britânico-n.t.), baseada em gravações e e-mails, alegou que uma companhia britânica teria pago 300 milhões de Libras em luvas para facilitar um contrato de compra de armamento pela Guarda Nacional Saudita.




Não existem boas soluções que a intervenção militar Britânica e Americana possa produzir: Existem sim soluções políticas nas quais os nossos Governos poderiam ter um papel reduzido: apoiar o desenvolvimento de Estados viáveis que não dependam nem de milícias nem da violência, ajudar na criação de instituições civis que não recorram ao terror, proteger as populações em risco levando-lhes ajuda humanitária.




Onde quer que as nossas Forças Armadas bombardearam ou invadiram nações muçulmanas tornaram pior a vida dos seus habitantes. As regiões onde os nossos Governos intervieram são as que mais sofrem com o terrorismo e guerra. Isto não é nem coincidência nem surpreendente.




E no entanto os nossos políticos nada aprendem. Insistindo na ideia que mais mortandade pode como que por feitiço resolver conflitos profundamente enraizados, eles espalham as suas bombas como se fossem pós mágicos.






George Monbiot

(www.monbiot.com)




Artigo publicado em “The Guardian”

(www.guardian.co.uk)

























Referencias

1. http://www.theguardian.com/guardianweekly/story/0,,1818778,00.html

2. http://www.theguardian.com/world/2014/aug/22/shia-attack-sunni-mosque-iraq

3. http://www.theguardian.com/world/2014/aug/24/iraq-frontline-shia-fighters-war-isis

4. http://www.theguardian.com/world/2014/aug/24/iraq-frontline-shia-fighters-war-isis

5. http://www.theguardian.com/world/2014/sep/29/iran-executes-man-heresy-mohsen-amir-aslani

6. http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/sep/29/stand-up-for-blasphemers-like-mohammed-asghar-frankie-boyle

7. http://www.amnesty.se/upload/apps/webactions/urgentaction/2014/09/23/52302414.pdf

8. http://www.theguardian.com/world/us-embassy-cables-documents/242073

9. http://www.independent.co.uk/voices/comment/iraq-crisis-how-saudi-arabia-helped-isis-take-over-the-north-of-the-country-9602312.html

10. http://www.theatlantic.com/international/archive/2014/06/isis-saudi-arabia-iraq-syria-bandar/373181/

11. http://www.independent.co.uk/news/world/politics/islamic-state-us-failure-to-look-into-saudi-role-in-911-has-helped-isis-9731563.html

12. http://www.publications.parliament.uk/pa/cm201415/cmhansrd/cm140926/debtext/140926-0001.htm#1409266000001

13. https://firstlook.org/theintercept/2014/09/23/nobel-peace-prize-fact-day-syria-7th-country-bombed-obama/

14. http://www.publications.parliament.uk/pa/cm201415/cmhansrd/cm140926/debtext/140926-0001.htm#1409266000001

15. http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/sep/26/west-isis-crusade-britain-iraq-syria

16. http://www.theguardian.com/world/2014/sep/28/isis-al-qaida-air-strikes-syria

17. http://www.haaretz.com/news/middle-east/1.616730

18. http://nypost.com/2013/12/15/inside-the-saudi-911-coverup/

19. http://www.theguardian.com/world/bae

20. http://www.theguardian.com/world/2010/feb/05/bae-saudi-yamamah-deal-background

21. Richard Brooks and Andrew Bousfield, 19th September 2014. Shady Arabia and the Desert Fix. Private Eye.




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 Meteorolês

5/10/2014

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                      A  GAZETA  DO  MIDDLESEX

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                                            METEOROLÊS




Imagino o leitor como possuindo um conhecimento suficiente do idioma de Shakespeare para ser capaz de manter uma conversação mais ou menos fluente, o que o leva a achar-se razoavelmente equipado para qualquer eventualidade que imponha ter de comunicar nessa língua

É verdade que não se pede que fale o Queen's English para se ir desembrulhando no dia a dia, mas quer seja para falar com eventuais turistas britânicos, numa demonstração da afabilidade tão portuguesa, quer seja para visitar ou, quem sabe, fazer vida em terras de Sua Majestade, é bom ter também algumas noções de Meteorolês e saber quais são os assuntos que não é boa ideia trazer à conversa.

Não querendo desanimar ninguém, desde já aviso que são muitos, incluindo tudo o que cheire a controvérsia ou antagonismo, começando pela política, coisas de dinheiro, rivalidades de qualquer tipo, (clubísticas , nacionais ou regionais), comentários sobre características físicas de alguém, (particularmente se estas se situarem entre os tornozelos e as sobrancelhas) e, above all, tudo aquilo que mesmo remotamente possa ter, God forbid, conotações sexuais.

Pressinto que nesta altura o leitor se interrogará sobre o que afinal se fala nestas ilhas, mas acredite que não é caso para alarme, pois foi precisamente para solucionar esse problema que os seus habitantes criaram este idioma. A Natureza na sua magnificência providenciou um assunto inesgotável, apaixonante, verdadeiramente obsessivo e que é, como já adivinhou, o Tempo.

Admito desde já que ao Britânico falta o dramatismo e a magnitude que se verifica no de outras latitudes, e que o segredo está em saber apreciar devidamente as suas subtis variações, a sua imprevisibilidade que mesmeriza diariamente quem cá vive, e que faz com que falhem frequentemente as previsões oficiais para gáudio da população.

Muitas vezes me interrogo, e não sou o único e muito menos o primeiro, sobre o que teria acontecido a este Povo se ele não tivesse este recurso para iniciar uma conversa. Provavelmente já estaria extinto há muito, prisioneiro da sua reserva e timidez, e cuja característica mais marcante é o desejo de não se intrometer na vida dos outros, o que é frequentemente interpretado como frieza.

O Tempo aparece então como o grande facilitador, o “Abre-te Sésamo” das relações sociais e não admira portanto que toda a conversa comece com uma referencia ao seu estado e que não o fazer constitui uma falha grave no protocolo estabelecido.

Quando alguém interpela alguém com um: “Hoje está frio não está ? “, o que na realidade quer dizer é : “Quero falar contigo, e tu queres falar comigo ?”.

Temos assim que a Primeira Regra do Meteorolês consiste na absoluta obrigatoriedade de se concordar com a observação que nos é feita sobre as condições meteorológicas.

Imagine o leitor que esse era um dia de calor de ananases, (que também os há). A afirmação seria absurda claro, mas seria uma falha grave se não concordasse mesmo assim com ela.

Mas as coisas complicam-se pois o Meteorolês divide-se em três Corpos distintos nos quais deve o leitor ser igualmente proficiente: O Tempo que fez, o que faz, e o que irá fazer. Pede-se que tenha uma opinião informada sobre todos eles e demonstrar erudição é altamente apreciado: Imagine, por exemplo, que o leitor diz a certa altura que a temperatura é exactamente igual à do mesmo dia em 1935, (afirmação que seria altamente improvável que pudesse vir a ser desmentida): Teria nesse instante ganho o eterno respeito e admiração de vizinhos, amigos e familiares.

Isto pode parecer exagero mas o leitor não estaria a fazer mais do que seguir uma longa e ilustre tradição de coligir informação meteorológica que surgiu por volta dos meados do Séc. XVII com a fundação da Royal Society. John Locke, que além de ser justamente considerado uma das mentes mais brilhantes do Iluminismo, foi também quem registou diária e minuciosamente o estado do Tempo por mais de quarenta anos, não tendo sido nem por sombras caso único. Com a utilização do barómetro a tornar-se extremamente popular, os meteorologistas domésticos pulularam e sem saber criaram o Meteorolês como segunda língua nacional. Nem todos porém seguiram a moda e Samuel Johnson chamava depreciativamente aos que o faziam “inspectores de barómetro”, dizendo que as previsões feitas segundo nova ciência eram o mesmo que “acreditar em fadas e duendes”.

Mas pergaminhos não faltam ao inexplicável fascínio que o Tempo destas ilhas exerce: Strabo, historiador grego, já dizia em AD 7 que ele era o responsável pelo carácter “simples e bárbaro” dos habitantes, e mais tarde Tácito escrevia em AD 94 que “o céu ali está sempre nublado e chove continuamente”. Bill Bryson, um escritor americano que vive há longos anos no Yorkshire afirmou, talvez com algum exagero, que viver aqui era devido à falta de luz solar o mesmo que viver “dentro de um tupperware” .

Desde que Hipócrates, o Pai da Medicina, defendeu que se aos povos Orientais faltava a coragem, a resistência e a elevação de espírito dos Gregos era por viverem sob um clima demasiadamente uniforme, que se estabeleceu a convicção de haver uma ligação directa e forte deste com o carácter dos habitantes.

Não admira portanto que muitos séculos depois um outro médico, o escocês John Arbuthnot, tenha escrito em 1733 na sua magnum opus “ Ensaio sobre os Efeitos do Ar sobre os Corpos Humanos” que as constantes variações de pressão atmosférica a que estavam sujeitos os povos do Norte eram responsáveis por estes serem “activos e corajosos” ao contrário do que acontecia com os do Sul, os quais por estarem livres dessas “agitações e sensações” eram na generalidade mais “preguiçosos e indolentes”.

É verdade que outro escocês, o filosofo David Hume, não se deixou convencer tendo escrito:

“A única conclusão que se pode tirar sobre o que distingue os povos que vivem sob climas diferentes é a que reconhece que os do Norte têm uma maior inclinação pelas bebidas alcoólicas fortes, enquanto que os do Sul a têm pelo amor e mulheres”.

Creio que por esta declaração é devida ao velho David uma prolongada ovação com várias chamadas ao palco.

Eu sinto, após algumas semanas no Algarve acordando sempre sob um céu imperturbavelmente azul, alguma nostalgia pelo “frisson” que é abrir as cortinas pela manhã sem saber o que esperar.

É verdade que depois de voltar a casa e de ter aguentado algum tempo o shitty weather do costume, fico novamente cheio de saudades do esplendoroso Sol algarvio.

E isto é só um pequeno exemplo do preço que se paga pela emigração, que faz com que não nos sintamos inteiramente bem neither here nor there. Resta a resignação.





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Pecados Cardeais

1/10/2014

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                                                           George Monbiot

                                       PECADOS CARDEAIS


“Quando dou comida aos pobres chamam-me santo. Quando pergunto qual a razão porque eles são pobres chamam-me comunista.” Declarou um dia o Arcebispo brasileiro Dom Hélder Câmara. Esta sua expressão desvenda uma das grandes divisões existentes no seio da Igreja Católica e a falta de conteúdo da declaração do Papa Francisco em como está do lado dos pobres.

As pessoas mais corajosas que jamais conheci foram Sacerdotes católicos. Quando trabalhei, primeiro na Papua Nova-Guiné (1) e depois no Brasil, encontrei homens preparados repetidamente para sacrificar a vida pelos seus semelhantes. Ao entrar pela primeira vez no mosteiro de Bacabal no Estado brasileiro do Maranhão, o Padre que me abriu a porta pensou que eu chegara para mata-lo. Nessa mesma manhã tinha recebido a ultima de uma serie de ameaças de morte por parte do grupo dos rancheiros locais e no entanto não hesitou em tranquilamente deixar-me entrar.

Dentro encontrei grupos de camponeses aterrorizados, muitos com ferimentos feitos por coronhadas e cujos pulsos tinham ainda as marcas das cordas que os tinham amarrado. Estes eram apenas alguns dos milhares que os Sacerdotes tentavam proteger dos latifundiários, políticos e policias locais que queimavam as suas casas, expulsavam das suas terras e que torturavam e matavam aqueles que ousavam resistir, e cuja cuja impunidade era garantida por um sistema judicial corrupto.

Tive uma pálida ideia do medo constante em que viviam esses Padres quando fui eu próprio espancado e quase morto pela Policia Militar(2). Mas eu pude seguir o meu caminho enquanto eles ficavam para defender aqueles para quem o conservar as suas terras era uma questão de vida ou de morte: A expulsão significava mal nutrição, doença e morte violenta nos bairros miseráveis para onde eram levados a viver.

Esses sacerdotes pertenciam a um movimento que se tinha espalhado pela América Latina após a publicação de “A Teologia da Libertação” em 1971 e cujo autor era Gustavo Gutierrez. Os Teólogos da Libertação não só se colocavam entre os pobres e os seus verdugos, como também mobilizavam os seus rebanhos para se oporem a que lhes fossem tiradas as terras, para conhecerem melhor os seus direitos e para que entendessem que a sua luta era parte de uma longa história de resistência que começou com a fuga do povo de Israel do Egipto.

Quando me juntei ao movimento em 1989, sete Padres brasileiros já tinham sido mortos e Óscar Romero, o Arcebispo de El Salvador, tinha sido assassinado; muitos outros em todo o Continente tinham sido presos, torturados e mortos.

Mas os ditadores, latifundiários, policias e pistoleiros não eram os seus únicos inimigos. Sete anos depois de ter saído de Bacabal voltei para encontrar o Sacerdote que então me tinha aberto a porta do convento(3). Porém agora não podia falar comigo. Tinha sido silenciado e era um dos que tinham sido objecto da extensa purga feita pela Igreja para se ver livre das vozes incomodas no seu seio. Os “Leões de Deus” eram conduzidos por asnos. Os camponeses tinham perdido os seus protectores.

O assalto tinha começado em 1984 com a publicação pela Congregação para a Doutrina da Fé, (anteriormente conhecida sob o nome de Inquisição), de um documento de autoria do seu chefe: Joseph Ratzinger, que mais tarde seria o Papa Bento. Esse documento denunciava “ os desvios e os riscos de desvios” da Teologia da Libertação. Nele o seu autor não negava o que apelidou de “confisco da maior parte da riqueza por parte de uma oligarquia de proprietários... ditadores militares que espezinhavam os mais elementares direitos humanos (e) as práticas selvagens do capital estrangeiro” na América Latina. Mas insistia que “É apenas de Deus que devemos esperar salvação e cura para os nossos males. Só Ele, e não o homem, tem poder para remediar situações de grande sofrimento”.

Segundo a Doutrina, o único meio ao alcance dos Sacerdotes para alcançar a justiça para as vitimas era conseguirem a conversão dos ditadores e dos assassinos a soldo, de modo que viessem a amar o seu semelhante e que se controlassem a si próprios.

“É apenas através de um apelo ao 'potencial da moral' do individuo e à sua constante necessidade de conversão espiritual que a mudança social pode ser conseguida...”(5). Certamente que os generais e os seus esquadrões da morte devem ter achado imensa graça a isto.

Mas pelo menos Ratzinger tinha uma possível linha de defesa, pois ao viver enclausurado no Vaticano não teria bem a noção do mal que causava. Durante a inquirição em Roma de um dos mais destacados libertacionistas, o Padre Leonardo Boff, o Arcebispo de S. Paulo convidou Ratzinger a visitar o Brasil para ver com os seus próprios olhos a situação dos pobres. Mas ele recusou e como resposta retirou ao Arcebispo grande parte da sua diocese(6). Ele escolheu ser voluntariamente ignorante. Mas o actual Papa nem esta desculpa pode apresentar.

O Papa Francisco sabia bem o que a opressão e a pobreza eram: Várias vezes por ano celebrou missa num dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires (7). No entanto como chefe dos Jesuítas argentinos denunciou a Teologia da Libertação e deu ordem aos Padres que se dedicavam a mobilizar e defender os pobres para abandonarem os bairros de lata, pondo fim à sua actividade política (8,9,10,11).

Agora Francisco defende que quer uma Igreja “pobre e para os pobres”(12), mas significará isto dar apenas comida aos pobres ou será perguntar também o porquê de serem eles pobres ?

As ditaduras da América Latina prosseguiram uma guerra contra os sem-terra, guerra essa que continuou em muitos sítios após o colapso desses regimes. Diferentes facções da Igreja Católica tomaram posições opostas nesse conflito.

Quaisquer que sejam as actuais declarações de intenção por parte daqueles que atacaram e suprimiram a Teologia da Libertação, eles foram na prática aliados dos tiranos, dos expropriadores de terras, dos donos dos servos da Divida, dos esquadrões da morte. Por muito ostensiva que seja hoje a sua humildade o Papa Francisco esteve do lado errado da História.

                                                                                                   George Monbiot

                                                                                               (www.monbiot.com)




Artigo publicado no Jornal “The Guardian”

(www.guardian.co.uk)




Referencias:

1. George Monbiot, 1989. Poisoned Arrows: an investigative journey through Indonesia. Michael Joseph, London.

2. The story is told in full in George Monbiot, 1991. Amazon Watershed: the new environmental investigation. Michael Joseph, London.

3. http://www.monbiot.com/1996/07/09/hunting-the-beast/

4. Joseph, Cardinal Ratzinger, 1984. Instruction on Certain Aspects of the “Theology of Liberation” Congregation for the Doctrine of the Faith
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_en.html

5. Joseph, Cardinal Ratzinger, ibidem.

6. Jan Rocha, August 2004 . Justice vs Vatican. New Internationalist magazine. http://newint.org/features/2004/08/01/social-justice/

7. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/15/pope-francis-joy-humility-unbending

8. http://www.democracynow.org/2013/3/14/a_social_conservative_pope_francis_led

9. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/17/pope-francis-first-sunday-prayer

10. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/15/pope-francis-joy-humility-unbending

11. http://ncronline.org/blogs/ncr-today/papabile-day-men-who-could-be-pope-13

12. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/16/pope-francis-church-poverty


















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