A Gazeta do Middlesex

Da Vida Breve

27/12/2013

0 Comments

 
Picture
                 DA VIDA BREVE

                  (De Brevitate Vitae ad Paulinum)

 


                        CARTA A PAULINO




                                                                                                                   ***

                                                                                                           Lucius Annaeus Seneca

                                                                                                                   (4bc - 65ad)










A maioria dos seres humanos queixa-se da maldade da natureza por lhes ter destinado uma existencia breve, e porque esse espaço de tempo passa tão fácil e rápidamente que com poucas excepções a vida acaba quando estamos finalmente preparados para a viver. E não é apenas o homem vulgar e a massa de gente ignorante que se lamenta , todos aliás encaram isto como um mal universal; é o mesmo sentimento que está na origem dos queixumes da gente de distinção. Daí a sentença do maior de todos os médicos (1) : “A vida é curta, só a arte é eterna”. Foi essa também a causa do sentimento de injustiça, (impróprio de um sábio), que levou Sócrates a dizer que culpava a natureza por ter dado a certos animais uma existencia que podia ser tão longa como cinco ou dez vidas humanas, enquanto que a homens nascidos para feitos gloriosos foi concedido tão pouco. Mas não é verdade que não tenhamos o tempo suficiente para viver, o que acontece é que desbaratamos grande parte dele. A vida é suficientemente longa, e uma generosa porção foi-nos dada de maneira que possamos realizar as mais altas aspirações se a investirmos bem. Mas se a esbanjarmos descuidadamente em nada que valha a pena, quando chegar a hora da nossa morte seremos forçados a perceber que a vida passou sem nos termos dado conta. Por isso é assim : Não nos foi dada uma vida breve, nós é que a encurtamos pela nossa negligencia.

Da mesma maneira que uma grande fortuna desaparece rápidamente em mãos perdulárias e que uma riqueza modesta, pertença de alguém prudente, pode aumentar com o decorrer do tempo, a nossa vida é suficientemente longa se for bem gerida.

Porque é que nos queixamos da natureza então ? Ela foi boa : A duração da vida chega se a soubermos usar. Mas enquanto que um homem é presa de uma insaciavel ganancia, outro dedica-se a tarefas insignificantes; um vive encharcado em vinho, outro entrega-se à preguiça; um gasta-se perseguindo ambições politicas, o que significa estar sempre à merçê do julgamento alheio, outro na miragem do lucro é levado a percorrer terras e mares distantes entregue ao seu comércio. Há quem tenha paixão pela vida militar e esteja disposto a causar dano a terceiros, mas viva ansioso sobre os perigos que enfrenta. Outro está ao serviço dos interesses de poderosos ingratos e insensiveis. Muitos não têm objectivo definido, mudando constantemente de direcção devido ao seu espirito volúvel e nunca, na sua inconstancia, estão satisfeitos consigo próprios. Há quem viva sem jamais ter almejado coisa alguma, e a morte quando vem apanha-os desprevenidos enquanto bocejam languidamente, de tal maneira que não posso duvidar da verdade daquela observação aparentemente enigmática do maior dos poetas: ”Apenas vivemos uma pequena parcela da vida”. Na realidade tudo o resto não é vida, é apenas tempo. O vicio rodeia e assalta os espiritos em cada canto, não dando tréguas nem permitindo que estes descirnam a verdade, tão acorrentados estão aos seus desejos. Jamais conseguirão ser eles próprios e se acaso conseguirem alguma tranquilidade, será como a ondulação no mar largo que não desaparece com o amainar do vento; esses seus desejos não lhes darão descanço.

Julgarão porventura que falo daqueles cuja maldade é conhecida ? Olhem para aqueles cuja boa sorte destinguiu : Parecem sufocar com tanta abundancia e para muitos a riqueza tornou-se uma carga insuportavel. Quantos parecem emaciados pelo gozo constante dos prazeres ? Quantos não perderam a liberdade sempre rodeados por multidões a solicitar favores ? Numa palavra, percorram-nos a todos, do mais humilde ao mais famoso, e o que encontrarão ? Um pede assistencia legal para outro; outro oferece a sua ajuda em beneficio de terceiros, ninguém parece pedir nada em seu favor : X cultiva a amizade de Y, que por sua vez cultiva a de Z, e assim sucessivamente e ninguem aparenta ter tempo para si próprio. Toda a gente, seja quem for, teve pelo menos uma vez na vida na presença de alguém importante que condescendeu em dar-lhe atenção, mesmo que ostentando um ar de não disfarçada superioridade. A questão é que esse alguém, (que teve o previlégio de ter o ouvido de um poderoso), nunca se deu ao trabalho de se olhar a si próprio e a si próprio dar atenção.

Mesmo as mentes mais brilhantes que alguma vez existiram e às quais fosse pedido ponderarem esta questão demonstrariam uma inusitada surpresa ao verem este espesso nevoeiro que aflige o espirito humano. Homens que não deixariam ninguém invadir as suas propriedades e que à minima disputa sobre as suas fronteiras correriam às armas, deixam que outros se intrometam nas suas vidas, sendo aliás os primeiros a dirigir o convite para que o façam : Não se encontrará ninguém disposto a partilhar o seu dinheiro, mas quantos permitem que lhes retalhem a vida ! As pessoas são frugais na guarda dos seus bens; mas quando se trata de desperdiçar o seu tempo são uns mãos largas e exactamente naquilo onde teriam todo o direito de serem avarentos.

Por isso eu gostaria de encontrar alguém de uma geração mais velha e dizer-lhe:
“Vejo que sendo quase centenário chegou à sua ultima etapa e que é portanto altura de fazer o seu balanço da sua vida: Lembre-se de quanto do seu tempo foi gasto tratando de coisas de dinheiro, quanto dele com amantes ou com patrões e clientes, ou discutindo com sua mulher, castigando os escravos, ou correndo para cumprir as suas obrigações sociais. Considere também as doenças que esses comportamentos lhe causaram, e o tempo que gastou fazendo nada. Chegará fatalmente à conclusão que tem menos anos de vida do que pensa. Recorde-se de durante quanto tempo teve um objectivo definido, de quantos foram os seus dias que correram como planeou, quantos teve para si próprio, quanto foi o tempo em que se sentiu calmo e satisfeito, recorde também as aspirações que conseguiu alcançar numa vida tão longa, e o tempo que perdeu com medos infundados, divertimentos insensatos, desejos gananciosos ou
cedendo à sedução da vida em sociedade, e verá quão pouco restou para si próprio.

Perceberá então que vai morrer prematuramente.”

Mas qual será a razão para esta situação ? Vivemos como se estivessemos destinados a durar eternamente ; nunca nos ocorre pensar na nossa própria velhice ; não damos conta de quanto tempo já passou, e continuamos a gasta-lo como se dele tivessemos uma fonte inesgotavel – mesmo sabendo que o nosso último dia pode ser gasto inconscientemente com alguém ou com alguma coisa sem importancia. Ouve-se muita gente dizer : “Quando chegar aos cinquenta deixo de trabalhar ; quando chegar aos sessenta renunciarei aos meus cargos” Mas quem poderá garantir que se lá chega ? E de quem dependerá que o decurso da vida seja exactamente como o planeamos ? Devias sentir vergonha por apenas deixares para ti próprio apenas os teus últimos dias. São essas as migalhas que sobram quando já não puderes tratar dos teus negócios que destinas para adquirires sabedoria ? Que asneira é querer começar a viver numa altura em que a vida está prestes a terminar ! Que estúpido é ignorar a nossa própria mortalidade, adiar os planos para quando formos velhos, para uma idade a que muito poucos chegam !

O divino Augusto, a quem os deuses agraciaram mais do que a qualquer outro mortal, nunca deixou de aspirar a um merecido descanço, por ter alivio do peso que a sua posição lhe fazia carregar . Quando falava voltava sempre a este tema : A sua esperança em poder um dia descançar. Ele embelezava as suas labutas consolando-se com a ideia, doce porém falsa, que a altura viria em que poderia fazer apenas o que lhe desse prazer. Numa carta que escreveu ao Senado, e após garantir que à sua saída da vida pública não faltaria dignidade, nem que seria incompativel com as suas glórias passadas, escreveu as seguintes palavras :” Mas é mais importante fazer as coisas como devem ser feitas do que apenas  promete-lo. Contudo, uma vez que essa maravilhosa realidade ainda está bem distante, o meu anseio por esse tempo é porém tão intenso que me leva a antecipar alguns dos seus encantos pelo simples prazer de neles falar.” Ele, que compreendia que tudo dependia dele somente, desde o destino de um só individuo ao de nações inteiras, só ficava realmente feliz quando imaginava o dia em que poderia renunciar à sua grandeza(...)

(1)- Hipocrates

(a continuar)        

Picture






Choque e Surpresa na Foyles



















Em 1903 dois irmãos, William e Gilbert Foyle, abriam na Charing Cross Road, em Londres, uma livraria que ainda hoje se encontra no mesmo local e que com o tempo se tornou numa verdadeira lenda, chegando mesmo a transformar-se numa atracção turistica. Não só pelo tamanho, apesar de ser tida como a maior do mundo, com os seus cinquenta quilometros de prateleiras onde cabiam 200.000 volumes, mas também pela exasperante e magestática indiferença com que tratava a clientela, insistindo em funcionar em moldes completamente insanos. Começava por os livros não estarem ordenados alfabéticamente, nem por titulo nem por autor, mas sim por editora. O espectáculo diário era verem-se grupos de compradores vagueando como almas penadas pelos corredores com um ar vagamente aparvalhado à procura do seu santo graal. Mas as dificuldades não acabavam aqui porque o cliente, após a inenarrável alegria de ter encontrado o que procurava, ainda tinha de sofrer mais tratos de polé : Primeiro era necessário ir para uma longa fila onde era emitida a respectiva factura e onde o livro desaparecia das suas mãos ansiosas ; seguia-se nova fila onde se pagava, mas havia ainda que suportar aquela que seria a terceira e onde se assistiam aos comoventes momentos em que o comprador e a sua compra se viam finalmente juntos de novo. Muitas vezes pensei que se a razão para tudo isto se devia a que na realidade a Foyles o que não desejava era separar-se dos seus queridos livros, e que lá no amago das suas labirinticas entranhas muitas lágimas amargas deviam ser vertidas em cenas de lancinantes despedidas. Mas era incontornável, os seus almoços literários eram um acontecimento impar onde celebridades, autores e politicos não faltavam, incluindo todos os Primeiros-Ministros desde os anos quarenta, alguns destes por mais de uma vez, como Margaret Thatcher e Tony Blair.

Mas havia ainda uma razão pela qual a Foyles era insubstituível : Imagine o leitor que procurava uma obra sobre um assunto hermético e obscuro e que nem as suas preces a Santa Rita de Cássia conseguiam que encontrasse o que procurava, nem mesmo rezando também a Santo Expedito e a S. Judas Tadeu, (porque nestes momentos há que experimentar tudo), e apesar de todos possuírem uma establecida reputação de serem especialistas em fazer verdadeiros milagres, ou não fossem eles santos, quanto a resultados nada, rien, zilch. Então era só ir a Charing Cross e fazer a encomenda que a Foyles trataria de encontrar a obra nem que fosse numa pequena livraria no bairro de Palermo em Buenos Aires, ou num velho alfarrabista com loja nas margens do Yang-Tsé.

Pois num dia não muito distante em que absorto dava uma volta pelas estantes, distraídamente lendo as lombadas, inesperadamente deparei com um titulo que dizia: “Usos invulgares para o Azeite”. Segui, não parei, porque tendo eu sido nado e criado à beira Tejo, acho que sei uma ou duas coisas sobre o assunto, e não seria certamente alguém desta terra que me iria ensinar fosse o que fose, quando este produto ainda nem há uma duzia de anos só se vendia nas farmácias . Concluí que seria mais uma manifestação da mania colectiva com a gastronomia que atacou ultimamente esta nação, e onde até os próprios pubs que dantes serviam por pouco dinheiro um honesto roast ou sausages and mash acompanhados por uma caneca de lager, agora deram em transformar-se em gastro-pubs com ementa e tudo, e em que ao cliente desprevenido é perguntado se para acompanhar a refeição prefere um tinto merlot ou shiraz. O Observer publica ao Domingo uma lista dos livros mais vendidos e na secção de não-ficção o leitor constatará que metade são livros sobre culinária e a outra metade são livros sobre dietas. Ora se isto não é pura esquizofrenia então não sei o que será. Já não falando dos programas de televisão com, entre muitos outros, o insuportável Jamie Oliver que nos entra constantemente em casa para nos ensinar em poucos minutos em como preparar um banquete com uma cebola, duas batatas, um dente de alho e meia lata de atum, e tudo isto enquanto não pára de falar pelos cotovelos. Uma outra, a Nigella Lawson, é pelo menos bonita que se farta, e mesmo que o estomago não se venha a deliciar com as suas receitas, gozam os olhos vendo-a atarefada entre tachos e panelas, o que convenhamos não é coisa despicienda.

Mas voltando ao livro, acontece que continuei a matutar na coisa, e de tal maneira não me saía da cabeça o despautério de um inglês se atrever escrever sobre o nosso muito amado azeite, que me dei ao trabalho, (e despesa), de voltar para o comprar, quanto mais não fosse para com conhecimento de causa poder escrever uma carta ao director do Times a desancar o autor.

Ele há coisas do diabo como toda a gente sabe, e maldita a hora em que tomei essa decisão porque, entre as aparentes inócuas páginas do «Unusual Uses For Olive Oil», o autor Alexander McCall Smith, relata factos cujo conhecimento me provocou um profundo abalo, coisa a que a minha idade não aconselha de todo.

Surpreendente ? Inesperado ? Infelizmente muitíssimo mais do que isso, pois li coisas absolutamente chocantes, completamente schrecklich ! Mas eu conto :

Provavelmente não terão os leitores ainda ouvido falar no Professor Dr. Moritz-Maria von Igelfeld, autor da magnum opus da filologia, o tratado intitulado “Os Verbos Irregulares Portugueses”, o qual infelizmente também não devem conhecer. São mil e duzentas páginas da mais pura erudição e um sucesso editorial com mais de duzentos exemplares vendidos, e o Prof. Dr. von Igelfeld é indisputávelmente não uma autoridade sobre o assunto, mas sim a autoridade.

Tudo começou com um aparentemente inocente artigo publicado no “Zeitschrift fur Romanische Philologie” que é uma publicação trimestral, de indispensável leitura para quem se quer dedicar com um minimo de seriedade à filologia. Coisa aborrecida, monotona, incapaz da minima alteração da equanimidade de seja quem fôr, pensará quem lê . Pois se pensava enganou-se: Porque se o mundo da filologia parece uma lago de águas tranquilas elas apenas o são à superficie, e o estimado leitor não imagina os monstros que redemoínham nas suas profundezas, como irá ver de seguida.

Acontece que há já largos anos um industrial alemão com gosto pelas questões linguisticas, instituiu um prémio anual a atribuir ao melhor ensaio publicado sobre linguas românicas. Chamar aos filólogos “ratos de biblioteca” é uma desnecessária crueldade, porque numa só coisa a eles se assemelham que é a de também viveram à mingua, sobrevivendo com os parcos recursos, as poucas migalhas, que uma sociedade ingrata lhes atira, e portanto o prémio de que falo, e que seria talvez achado irrisório pela maioria, é para eles um real conforto para as algibeiras.

Mas voltando ao assunto, tratava-se na altura de fazer a short-list dos candidatos ao prémio desse ano e o primeiro nome escolhido foi o do Professor J.G.K.L. Singh da Universidade de Chandigarth. O Prof. Singh era uma estimável pessoa, talvez um tudo nada para o calado, entediante mesmo, mas ninguém tem culpa de ser introvertido e o Prof. Dr. von Igelfeld não andou nada bem ao pôr-lhe a alcunha de o grande chato de Chandigarth, quando ainda por cima tinha telhados de vidro, porque “Igel” em alemão quer dizer porco-espinho e “feld” quer dizer campo ; logo não foi prudente que o Prof. Dr. “Campo de Porcos Espinhos” alcunhasse seja quem fosse, a menos que quisesse ficar ele próprio a ser chamado, (nas suas costas, óbviamente), “Professor Porco Espinho”, como realmente aconteceu. E tudo isto fez com que começasse a haver mau ambiente nas reuniões, e o Prof. Thomas Simpson de Oxford, uma figura conceituada no campo das consoantes mudas, levava frequentemente a sua inclinação para o sarcasmo longe demais com as suas piadas aceradas, o que estava longe de melhorar as coisas.

O segundo nome escolhido foi o do Professor Antonio Capobianco da Universidade de Parma, autor de uma obra sobre o subconjuntivo no italiano do Sec. XVII, obra essa que o Prof. Von Igelfeld classificou sumáriamente numa critica como sendo “ephemera”, o que não fez nada bem à estima mutúa como calculam.

O terceiro e último nome foi o do Prof. Dr. Detlev-Amadeus Unterholzer do Instituto de Filologia Românica de Regensburg, e por coincidencia também autor de uma reputadíssima obra sobre os verbos portugueses que lhe trouxe grande fama internacional, a si próprio e ao seu Instituto.

O Prof. Unterholzer foi durante muitos anos assistente do Prof. Igelfeld, e toda a gente sabe que o primeiro tem um longuíssimo rol de agravos, ofensas e desconsiderações de que foi vitima por parte do seu antigo chefe. Não seria exagero dizer-se que o Prof. Unterholzer nutre por ele um intenso rancor, e é de admitir-se que muito provavelmente lhe venham frequentemente à cabeça planos para uma crudelíssima vingança.

Está portanto montado o palco e os principais actores estão em cena. Ao leitor não custará pressentir o drama que se irá desenrolar, e a que voltarei noutra ocasião, se para tal não me faltar o animo.

Aos mais impacientes, que se perguntam principalmente onde e como entra o azeite nesta trama, aconselho calma, e aqueles que se sentem devorados pela curiosidade e incapazes de esperar, sempre podem procurar o livro “Unusual Uses for Olive Oil” de Alexander McCall Smith, avisados que estão do abalo que a leitura lhes poderá causar.










0 Comments

December 22nd, 2013

22/12/2013

5 Comments

 
Picture
                                

                           
                ONDE SE FALA EM COMO O OPTIMISMO VENCEU A PRUDENCIA






Na National Gallery, em Trafalgar Square, numa das muitas salas repletas de quadros, a um canto e passando quase despercebida está exposta uma pequena tela com um auto-retrato de Salvatore Rosa. Pintor e poeta , natural de Nápoles, não é dos mais conhecidos a não ser talvez pela mensagem que deixou nesse quadro :

“Aut tace aut loquere meliora silentio”

Ou seja : “Não fales a menos que aquilo que digas seja melhor que o silencio”. Nas minhas muitas visitas fico sempre uns momentos contemplando o quadro relendo tão sábio conselho e não foram poucas as vezes que me arrependi por não o ter seguido.

Quando há algum tempo ganhei o hábito de fazer uma viagem solitária pelos blogs portugueses, estando longe sem guia ou bússula, ía à descoberta e muitas vezes já noite alta e na hora de terminar, vía com satisfação que a “pesca” tinha sido boa. Inevitavelmente a certa altura comecei a sentir vontade de igualmente “botar” palavra, de também ter o meu próprio blog.

Porém a lembrança da frase de Salvatore Rosa fez com que fosse adiando esse momento por pensar se o meu silencio não seria bem melhor do que aquilo que eventualmente pudesse dizer, e se agora decidi avançar não foi por inesperadamente ter concluído que o mundo se tornaria num lugar melhor ouvindo as minhas opiniões mas por, havendo tantas centenas de blogs publicados e todos clamando por atenção, mais um não fazer grande diferença. Isto não quer dizer que não acalente uma vaga esperança de ter algum sucesso: Qual é o blogger que não aspira a que a sua presença seja notada, o seu nome lembrado, as suas opiniões ouvidas, e os seus erros tratados com indulgência? Aliás ponderei, (não muito sériamente, confesso), chamar ao meu recém-nascido “Can I have your attention, please ! ” porque é disso que realmente se trata, mas ficou mesmo “A Gazeta do Middlesex”, nome do antigo condado onde vivo, hoje fazendo quase totalmente parte de Londres, e para onde há já demasiados anos ventos fortes e mar revolto me fizeram arribar.

A política, (a britânica entenda-se), continua no centro dos meus interesses e preocupações,e muito embora a minha participação seja minima sobre ela escreverei, não tardando muito para que os improvaveis leitores percebam para que lado pende o meu coração, ao mesmo tempo que encontrarão insuspeitadas semelhanças com o que se passa em Portugal. Aliás eu, tendo sido nado e criado à beira Tejo como fui, conservo apesar de tudo um olhar português sobre as coisas, olhar esse que a aculturação não apagou.

Foi Dante que disse que o sitio mais quente do Inferno está reservado áqueles que nos momentos dificeis escolhem a neutralidade. Muitos outros pecados me cabem para que me possa sentir seguro de não ter nele lugar reservado, mas se assim acontecer não será por não ter tomado partido.

Falarei disto e daquilo, do mais sério ao trivial, mas nunca ex-cathedra, sendo como sou um sapateiro consciente de que não se deve atrever a tocar rabecão. Pelo meio gostaria de ir traduzindo e publicando alguns ensaios de Montaigne, e como quem gosta de Montaigne naturalmente também gosta de Séneca, (Aliás a Montaigne os seus contemporaneos chamavam o Séneca françês), e de Epicteto, de Marco Aurélio e Epicuro. Achei que não seria má ideia deles também tratar, contando, como conto, com a infinita benevolência de quem lêr.

Não tenho outras ambições além de porporcionar uma leitura agradavel, agradavel mas nem sempre, pois há demasiada gente a tornar este mundo ainda mais pobre e desgraçado do que já é, para não ter por vezes de falar , e perdoem o vernáculo, nas muitas sacanices que por aí se fazem.

E, last but not least, falarei desta minha pátria adoptiva, sobretudo do seu povo, da sua generosidade, tolerancia, sentido de humor e abertura de espirito, e principalmente da sua particular maneira de ser, sobre a qual tantos livros já foram escritos, mas que continua a ser fonte de inesgotáveis perplexidades, mesmo para aqueles que como eu passaram a fazer parte da familia.

Quando ganhei o hábito de ler blogs portugueses assinava os comentários que por vezes fazia como manuel.m identidade que continuarei a usar, não porque o anonimato esconda algo mais do que a prosaica vida de um oap (old age pensioner), mas porque o que escreverei será o que revelará a pessoa que afinal sou, que é o que realmente importa.

E um final caveat :

Foi Oscar Wilde que no “Retrato de Dorian Gray” escreveu mais ou menos isto :

“A cabeça de um velho é como uma loja de bric-á-brac com prateleiras cheias de quinquilharias cobertas de pó...”. Pois a minha não foge à regra e será natural acontecer , por exemplo, lembrar-me de ir buscar uma figurinha de Meissen, prenda de casamento da dear Auntie Maesie e no caminho esquecer-me completamente ao que ía e acabar por trazer um pesa- papeis com a inscrição “Bognor Regis 1958 “. Portanto ficam avisados, (resta esperar que apesar de tudo ainda conserve um modicum de coerencia e lucidez...) .

Não procurando fama ou influencia, escreverei como se falasse com um leitor imaginário com quem estivesse numa amena cavaqueira, e que tal como eu ache que um dos grandes prazeres da vida é uma boa conversa, despretensiosa e divertida, que é verdadeiramente possivel apenas entre pessoas que levam a vida muito a sério.

E como por cá se diz :“where there is tea there is hope !”, aqui está ele e só falta arredar uns papeis e uns livros para que se possa sentar confortavelmente.

Outside is already dark and bitterly cold and so, Shall we begin ?







                                   BLANCO WHITE

                                                         E

                                  GEZA  VERMÈS




por manuel.m







“Existem apenas dois erros que se podem cometer no caminho para

a verdade : O primeiro é não ir até ao fim, o segundo é não começar”

Siddhartha Gautama












                                                            I




                                            BLANCO WHITE  

Picture
Num dia de Julho de 1775 nascia em Sevilha numa casa da calle Jamerdana, mesmo ao lado do antigo hospital de los Venerables e a dois passos de La Giralda, uma criança do sexo masculino a quem foi dado o nome de José Maria Blanco y Crespo e à qual estaria destinada uma vida extraordinária . A familia, de ricos mercadores, tinha origens na Irlanda de onde há gerações havia fugido devido às perseguições feitas pelos protestantes aos católicos. Os pais do pequeno José Maria eram particularmente devotos, conhecidos pela sua generosidade e pela sua ajuda aos doentes pobres. Neste ambiente não causou portanto surpresa quando aos doze anos o jovem anunciou que tinha descoberto vocação para o sacerdócio.

O primeiro passo foi a entrada num colégio de Dominicanos mas não tardou que, tendo lido livros que condenavam a escolástica e o seu principio da superioridade da fé sobre a razão, se revoltasse contra o ensino esclerosado da Ordem, o que tornou impossivel a continuação dos estudos .

Felizmente tinha já demonstrado possuir uma enorme capacidade intelectual, o que levou a ter sido aceite na Universidade de Sevilha onde rápidamente se destinguiu, passando a fazer parte da elite cultural da cidade. Ávido pelas novas ideias que chegavam da Europa, funda a Academia de Letras Humanas, aprende inglês,francês e italiano, inicia a tradução para espanhol de literatura estrangeira, começa a escrever poesia e com apenas 24 anos, acabado o curso com a menção summa cum laude, é ordenado sacerdote e tal é já a sua fama que é nomeado capelão real.

Mas o Padre Blanco não estava destinado a uma vida plácida feita de missas regulares, casamentos, baptizados e funerais. Começa mesmo a questionar o dominio da Igreja sobre a sociedade e as dúvidas, cada vez mais fortes, levam-no a escrever a um amigo :”Sinto-me na obrigação de ir cumprindo os meus deveres sacerdotais mesmo achando no intimo que promovo uma impostura”.

Nenhum povo viveu o catolicismo como o espanhol e em nenhuma parte de Espanha foi a fé católica tão fervorosa, teatral, dramática e excessiva como em Sevilha, como ainda hoje se pode observar na Semana Santa. No sec XVIII, desde o típico bairro de Santa Cruz até aos arrebaldes, ao perfume dos laranjais misturava-se o cheiro de incenso dos inumeros altares, e por todo o lado sombrios conventos, verdadeiras sepulturas para seres vivos , alternavam-se com igrejas, capelas, oratórios e relicários, com as estreitas vielas a serem constantemente percorridas por infindaveis procissões onde não faltavam penitentes auto flagelando-se. Para o jovem cura D. José o ambiente tornou-se demasiadamente opressivo e em 1806 decide mudar-se para Madrid, na esperança de aí encontrar “una pobre sombra de libertad”.

A Espanha entretanto atravessava tempos turbulentos . Aliada primeiro da França de Napoleão com a qual invade Portugal, e cuja divisão já tinha sido combinada no Tratado de Fontainebleau, acaba por se revoltar contra o Imperador quando este em 1808, mau conhecedor do carácter dos espanhois, sem cerimónias depõe o rei Fernando VII para colocar no trono de Espanha o seu irmão José Bonaparte.

O patriotismo de José Blanco é mais forte do que a sua secreta admiração pelos ideais da Revolução Francesa, e decididamente não fará parte dos “josefinos” ou “afrancesados”, nome porque são depreciativamente conhecidos os partidários de Bonaparte. Logo que é possivel abandona a capital e regressa a Sevilha onde entretanto se tinha formado um governo provisório, mais conhecido por “la junta”, e com o qual começa a colaborar. Edita “El Semanário Patriótico” onde apela à união contra os franceses, mas cuja vida será no entanto efémera, pois Blanco não cala as suas criticas ao governo, que considera incapaz de ganhar a guerra e modernizar a Espanha, mas sobretudo de não querer pôr fim a séculos de obscurantismo e tirania :




“Expulsemos, dizem, os franceses, como se fossem apenas eles que nos oprimem, como se tentar mudar o mau governo que levou à sua vinda nos pudesse distraír de os combater, ou moderar o ódio que por eles sentimos. Expulsemos os franceses como se depois de os expulsar tivessemos a garantia de ver establecidos os nossos direitos no meio da embriaguez do triunfo “




E com ainda maior frontalidade :




“ A opulência das classes superiores e a facilidade com que se vê serem satisfeitos até os seus pequenos caprichos, enquanto que ao povo está reservada uma miseravel subsistencia, causa uma terrivel revolta nas gentes. E muitos pensam, quando contemplam as injustiças da sociedade que condena a maioria à quase escravatura e à indigência para saciar a ambição dos que vivem no ócio e na abundancia, que isso se deve a uma fatalidade do destino que não podem mudar, por terem sido marcados pela natureza com o ferro da escravidão, e assim resignam-se à sua sorte e com essa resignação dão novas forças à opressão e à tirania”.

(Semanário Patriótico, XVI, Maio 1809)




E o “El Semanário Patriótico” foi encerrado




Em 1810 a situação militar não cessa de se deteriorar e Sevilha é ocupada pelos franceses. Blanco é um homem marcado e refugia-se em Cádiz, cuja queda parece iminente, mas a salvação vem na forma de um barco que o leva rumo a Inglaterra, partindo para nunca mais regressar à terra pátria.

Está assim montado o palco para o segundo acto da vida de José Maria Blanco y Crespo, e como irão ver será mais extraordinário que o primeiro.

Chegado a Londres, e sem meios de subsistencia , contacta com Lord Holland, um simpatizante da causa liberal em Espanha, que tinha conhecido tempos antes em Madrid, e em boa hora o fez porque este não lhe regateia ajuda e aceita mesmo financiar um projecto aparentemente insensato que é o lançamento em Londres de um jornal espanhol e assim nasce o “El Español” . Editado e redigido exclusivamente por José Blanco e publicado num país em que os sentimentos históricos anti-espanhois tinham sido avivados pela recente aliança hispano-francesa contra a Inglaterra, (a batalha de Trafalgar tinha ocorrido em 1805), poucos eram os que não vaticinavam ao “El Español” uma vida curta mas, contra todas as expectativas, a modesta publicação não só teve sucesso mas como também ganhou o apoio da opinião publica para a causa liberal, e a sua destribuição clandestina em Espanha foi determinante na luta interna contra o absolutismo.

Mas o Padre Blanco , livre -pensador e infatigavel lutador pelas causas da liberdade, não se limitou às lutas ibéricas, e as páginas do seu jornal foram uma bandeira, primeiro contra a escravatura ainda em vigor em Espanha, (tinha sido abolida pelo parlamento de Westminster em 1807), e depois pela defesa dos direitos dos povos do Novo-Mundo hispânico, mundo esse onde se registavam os primeiros movimentos pela independencia, os quais encontraram desde o primeiro momento um entusiástico apoio nas páginas do “El Español”.

Alexander Humboldt tinha recentemente publicado com grande sucesso o “Ensaio Politico sobre o Reino da Nova Espanha” assim como “Viagem às regiões equinociais do Novo Mundo”, os primeiros livros sobre as suas viagens pela América Latina, e o interesse pela América do Sul nos meios cultos da Europa era enorme, tendo sido Blanco a dar a essas obras a maior divulgação possivel, incluindo nas colónias espanholas. Sobretudo no México o “Ensaio” teve um enorme impacto e inspirou todos os movimentos independentistas e o racionalismo militante de Humboldt, o seu anticlericalismo e culto da liberdade, deixaram na nascente nação mexicana uma marca indelével, que foi bem patente no apoio dado por ela à causa republicana durante a guerra civil de Espanha.

Temos assim que um pobre Cura católico e sevilhano, ( The self- banished spaniard, como ele próprio se definia), refugiado num país profundamente hostil aos “papistas”, consegue publicando uma modesta folha em espanhol, o apoio desse país não só para a causa da liberdade do seu próprio, mas também ser decisivo na génese dos movimentos de independencia das nações latino-americanas.

Com a derrota de Napoleão e o fim da guerra peninsular, no final de 1813 Fernando VII regressa ao trono e agudiza-se a luta entre liberais e absolutistas. Aos primeiros falta um programa politico coerente e viavel em vez de um conjunto vago de principios filosóficos e direitos abstractos, enquanto os segundos sabiam bem o que queriam : Aspiravam apenas a repor o antigo regime de tirania religiosa e politica.

E se José Blanco temia um regresso ao passado em breve os seus temores tornar-se- iam realidade pois logo em 1819 a Santa Inquisição era restaurada nas Canárias, e os partidários do absolutismo sabiam bem o inimigo que tinham nele, cuja obra classificavam como “um conjunto continuado de blasfémias contra a sagrada religião” de serem “horrendas invectivas contra os soberanos” e de “pregar aos seus vassalos a independencia e a absoluta liberdade”.

Anos mais tarde é o próprio Papa Leão XII a publicar uma encíclica bem clara na defesa da aliança entre o trono e o altar, proclamando sem ambiguidades a posição da Igreja sobre a democracia em geral e a independencia das colonias espanholas em particular :

“As (juntas independentistas americanas)....formadas numa escuridão lúgrebe....tornadas em imundas sentinas de onde emana tudo aquilo que há de mais sacrílego e blasfemo em todas as seitas heréticas, e cujas doutrinas conduzem à ruína das almas...”.

E como unica via para a salvação o Papa exorta os fieis a obdecer “Ao nosso muito amado Filho Fernando, Rei católico das Espanhas e cuja sublime e sólida virtude o faz pôr à frente do esplendor da sua grandeza, a glória da religião e a felicidade dos seus súbditos...”

Não admira que não sejam poucos os espanhois que encontram evidentes semelhanças entre a encíclica de Leão XII e a “Carta colectiva do Episcopado Espanhol” em apoio à cruzada franquista de 1936...

Entretanto José Blanco, após anos de labuta intensa, está doente e exausto e sobrevive graças a uma pequena pensão concedida pelo governo inglês. As noticias de Espanha são desanimadoras e se esperanças tinha que a Igreja se reformasse e com ela o país, elas desvanecem-se rápidamente. Amigos convencem-no a ir para Oxford onde passa a ensinar e muito embora se considere crente, perde a fé no catolicismo cujos defeitos, como o uso da teologia para fins politicos, o do misticismo para manipular as emoções, o da autoridade absoluta do clero baseada em dogmas indiscutiveis, considera irreformáveis.

Um dia, quando assistia a uma celebração numa igreja anglicana, e ficando comovido até às lágrimas ao ouvir cantar o hino de Joseph Addison, “When All Thy Mercies O My God, MyRising Soul Surveys”, tem o seu momento da estrada de Damasco e decide converter-se aoAnglicanismo.
Muda o nome para Joseph Blanco White e pouco depois é ordenado sacerdote anglicano.

Morre assim o Cura e nasce o Reverendo Blanco White. Mas porquê a redundancia no nome? Porquê não apenas White ? Talvez seja porque para ele em Blanco cabe toda a sua Sevilha natal, os pregões nos mercados tipicos, os sinos a tocar as vésperas, as noites calorosas , os passeios pelas margens do Guadalquivir. Poderá ser José ou Joseph, católico ou anglicano, mas para conseguir continuar terá de ser Blanco também.

Mantem-se em Oxford, onde escreve e ensina, e convive com muitas das maiores figuras intelectuais da época, incluindo Samuel Taylor Coleridge, Robert Southey, Richard Hurrel Froud, Richard Whately, (mais tarde Arcebispo Whately), mas sem dúvida a mais extraordinária amizade foi aquela que ligou Blanco White e John Henry Newman, ambos colegas na Universidade e sacerdotes anglicanos. Mas John Newman iria percorrer o caminho inverso de Blanco, ao experimentar uma completa transformação espiritual que o leva a renunciar ao Anglicanismo e a converter-se ao Catolicismo . Personalidade única, será mais tarde Cardeal, funda a Universidade de Dublin, e tão grandes eram as suas virtudes cristãs, que em 2010 o sempre venerado Cardeal Newman foi beatificado pelo Papa Bento XVI.

Mas para Blanco White o caminho ainda não tinha terminado, e a certa altura começa a sentir uma profunda rejeição pelo anglicanismo. Demasiado parecido com a prática católica e apesar de permitir uma incomparavelmente maior liberdade das consciencias, é ainda demasiado dogmático para satisfazer o seu desejo por uma relação individual e directa, não intermediada, com o Divino.

O Unitarismo, assim chamado por rejeitar a existencia da Santissima Trindade e afirmar a unidade de Deus, (daí o nome), tinha surgido na Europa Central no Sec.XVI. Condenada por ser uma seita herética, sofreu violentas perseguições até ao inicio de Sec. XIX, altura em que um pequeno núcleo de seguidores funda em Liverpool a primeira Igreja Unitária de Inglaterra.

Os principais artigos da fé unitária eram o direito dos crentes de lerem e interpretarem livremente a Bíblia, o de procurarem uma relação directa com Deus sem a mediação de sacerdotes ou Igreja, e a liberdade de seguir a sua própria consciencia mesmo contra os ditames das instituições religiosas. Mas a diferença fundamental era a negação da natureza divina de Cristo, acreditando ser Ele total e inequivocamente humano, tendo sido apenas um lider religioso na tradição judaica, cuja mensagem essencial era o apelo ao amor entre os homens, e cuja existencia foi um poderoso exemplo de integridade, coragem e compaixão. Cristo podia para os Unitários ser entendido como divino apenas na medida em que a Sua vida e ensinamentos revelaram ao homem a existencia de um só Deus criador do Universo.

Para o Reverendo Blanco White, velho libertário, os princípios dos Unitários pareciam ser algo que finalmente satisfazia as suas dúvidas, o termo do árduo caminho que a fé lhe tinha feito percorrer , com a recompensa de ter encontrado uma casa, um lugar para o repouso final.

E assim, no ocaso da sua vida, prepara-se para a sua terceira e derradeira conversão, novamente voltando as costas a tudo e completamente só, despido de quaisquer bens terrenos , seguindo a luz avassaladora da verdade, parte para Liverpool onde pede para ser aceite na pequena comunidade Unitária.

Para traz fica o Padre e o Reverendo, e surge o Pastor de uma pequena congregação, aquele que na sua procura pela verdade aceitou o exílio dentro do exílio, no frio, sombrio e austero Norte, tão longe do sol andaluz sob o qual nasceu. Morrerá pobre, esquecido por uns e vilependiado por outros, mas cuja memória perdurará para sempre entre os homens de boa vontade.







                                                                                        II

                                                                          GEZA VERMÉS

Picture
Em Maio de 2013 morre em Oxford alguém de quem se poderá dizer que ao partir deixou um mundo melhor devido ao seu contributo para a paz entre os homens, ao dar-lhes os meios de entendimento para que ódios milenários passem a ter mais dificuldade em envenenar os corações.

É um breve resumo da sua vida que se propõe ao leitor, feito na esperança que o fulgor da sua herança faça esquecer as toscas palavras aqui alinhavadas.

Desaparecido o Império Austro-Hungaro com a derrota na I Guerra, a Hungria, enfrenta logo uma revolução bolchevista que acaba por conseguir tomar o poder. A fome generalizada, o desemprego, uma economia destruída e uma massa de milhares de soldados desmobilizados e sem destino, são o alimento da revolta, liderada por comunistas e simpatizantes. É proclamada a ditadura do proletariado e Béla Kun é nomeado chefe do governo revolucionário que imediatamente inicia um periodo de terror com centenas de execuções sumárias, sobretudo de membros do clero e da alta-burguesia.

Kun, que tem a esperança de reaver os territórios perdidos pelo Tratado de Versailles, inicia uma campanha militar contra a Eslovénia, mas é obrigado a bater em retirada quando a França ameaça intervir. Volta-se então para a Roménia que invade, para sofrer uma estrondosa derrota militar. Será então a vez de serem os romenos a entrar na Hungria e ocupar Budapeste, pondo em fuga Kun e os seus partidários. (Este, que se tinha refugiado na Rússia, será mais tarde fuzilado por Estaline). Os romenos apoiam a criação de um governo militar anti-comunista e inicia-se um novo periodo de terror ainda mais brutal do que o primeiro, e cujas vitimas serão os anteriores carrascos.

A Hungria, que no fim da Primeira Guerra tinha sido obrigada a ceder 2/3 do seu território e 60% da população a diversos países vizinhos, enfrenta uma situação económica e social dramática que vários governos autoritários de direita não conseguem resolver, chegando mesmo a ser tentada sem sucesso a restauração da monarquia. Desde 1920 que são promulgadas leis cada vez mais anti-semitas e aos judeus fica, por exemplo, proíbida a entrada nas universidades. Em 1930, tendo renascido o poderio económico dos alemães e com a subida ao poder de Hitler, os laços entre os dois países reforçam-se e a Hungria passa a ser um Estado cliente da Alemanha, que facilita avultados empréstimos para que os hungaros lhe possam adquirir a maquinaria e as matérias primas necessárias à sua subsistencia. Mas tudo tem um preço e, declarada a guerra em 1939, um ano depois a Hungria entra no conflito como aliada dos nazis.



Anos antes, em 1924, nasce em Budapeste um filho ao casal Terezia Riesz, professora, e Emo Vermés, jornalista e poeta, ambos judeus não praticantes, e ao qual foi dado o nome de Geza. Tinha o jovem seis anos quando os pais tomam a decisão de se converter ao catolicismo. Se a decisão se deveu á tentativa de escapar às medidas anti-semitas, então não resultaria porque por lei apenas os judeus baptizados anteriormente a 1919 eram considerados legalmente assimilados. A verdade é que ambos demonstraram uma genuína devoção cristã e o filho do casal é matriculado numa escola primária católica, e será também católico o colégio onde terminará os estudos secundários em 1942.

Geza, sentindo ter vocação para o sacerdócio, entra para o seminário, decisão que lhe irá salvar a vida. Anos depois, na sua auto-biografia intitulada “Acasos Providenciais”, afirma que essa entrada seria apenas o primeiro dos muitos desses felizes acasos que irão marcar a sua existencia. Dois anos depois, já como diácono, enfrenta a mais terrivel das situações pois em Março de 1944 os alemães, apesar de terem a guerra perdida, não desistem de exterminar todos os judeus, e como os da Hungria eram os unicos a ter escapado ao holocausto até então, será o próprio Adolf Eichmann a ser encarregue de ir pessoalmente dirigir com diabólica determinação a sua deportação e morte. Em Auschwitz fazem-se metódicamente os preparativos para a matança dos muitos milhares de vitimas que não tardarão a chegar, estando preparadas as reservas de combustivel para garantir a tarefa macabra dos fornos crematórios .

Geza está relativamente seguro na clandestinidade, sob a protecção dos Salesianos e dos Dominicanos, (que o fazem com grande risco pessoal, como mais tarde irá contar), mas aos pais aguarda o fim terrivel de serem inevitavelmente apanhados pelos SS e de serem levados para as camaras de gás.

Durante algum tempo encontram-se clandestinamente, tomando todas as precauções para não serem descobertos. Para a mãe, que usa roupas claras para que a estrela de David amarela que é obrigada a usar passe mais despercebida, estes encontros são um risco terrivel para o filho e quer por-lhes fim, mas este suplica que se continuem a ver, até que um dia os pais não aparecem no local combinado para o encontro, e Geza nunca mais os voltará a ver.

Em Dezembro de 1944 Budapeste é libertada pelo exército vermelho e poucos meses faltam para a rendição da Alemanha. Para Geza, que entretanto já tinha sido ordenado sacerdote, ficar na Hungria onde não lhe restava absolutamente ninguém e onde como membro do clero enfrentava a prisão e a deportação pelos soviéticos, era a pior das opções. Sabendo que, algures no norte da França ou na Bélgica, existia uma Ordem religiosa chamada Padres de Nossa Senhora do Sião formada por judeus convertidos e que lhe poderia dar guarida, decideempreender uma caminhada solitária na esperança de encontrar esse porto de abrigo.

Com a Hungria, a Austria e grande parte da Alemanha ocupadas pelo Exército Soviético, a jornada que Geza Vermés se propôs fazer era de uma temeridade extraordinária. Atravessar uma Europa devastada pela guerra, onde centenas de milhares de refugiados morriam à mingua de socorro, ele sem ter documentos ficava sujeito a ser tomado por um nazi em fuga, e sumáriamente executado. É dificil hoje compreender como Geza conseguiu sobreviver a meses de terriveis perigos e provações mas, já no fim das suas forças, consegue finalmente encontrar o seu destino na cidade de Lovaina, na Bélgica. Contará mais tarde que tal foi a alegria que sentiu nesse momento que teve vontade de cantar o Te Deum , mas que estava demasiado fraco para ser capaz .

Desejoso de voltar a estudar, frequenta a Universidade Católica de Lovaina, na mesma cidade onde tinha passado a viver, e licencia-se em Filosofia e Teologia com especialização em História e Linguas Orientais.


Entretanto em 1947, um pobre pastor árabe descobre escondidos numas cavernas nas margens do Mar Morto, uns potes de barro contendo antigos pergaminhos que iriam mudar para sempre a História dos templos bíblicos.

Vermés é dos primeiros a estudar esses achados e o primeiro a fazer a sua tradução. Atribui a sua autoria, em meados do Sec. II a.c. , aos Macabeus que eram uma seita ou movimento que lutava na Judeia pela manutenção da pureza da fé judaica e contra a influencia da cultura grega. Esta teoria, que nunca dantes tinha sido formulada, veio a ser aceite nos meios académicos e Geza Vermés é, em 1953, o primeiro a doutorar-se com uma tese sobre o tema, do qual passa a ser unanimemente considerado como sendo a maior autoridade.

Entretando os seus superiores decidem que deve mudar-se para Paris, onde os Padres de Sião mantêm uma residência, e onde continua os seus trabalhos de investigação, passando também a co-editar com Paul Démann os Cahiers Sioniens, a publicação da Ordem, e em cujas páginas inicia uma luta aberta contra o anti-semitismo então generalizado na Igreja Católica. Os Cahiers, e o enorme prestigio de Geza Vermés, vão fazer com que haja uma mudança histórica na posição da hierarquia católica , mudança essa plenamente assumida no Concilio Vaticano II com a publicação da encíclica “Nostra Aetate”, (“No nosso tempo”), onde eram repúdiadas todas as acusações históricas contra os judeus e reconhecidos os laços partilhados por ambas as religiões, assim como a aliança eterna entre Deus e o povo judaico.

É dificil entender este volte-face da Igreja de Roma, na sua verdadeira magnitude histórica e teológica, ao aceitar não só as raízes comuns de ambas as Religiões, mas também um destino igualmente comum. Dessa partilha Geza Vermés deu sempre testemunho público, falando da imensa coragem de inumeros cristãos ao protejerem judeus durante a ocupação nazi. Lembrava particularmente comovido o Padre (posteriormente Bispo) Vilmos Apor que foi quem o tinha baptizado, como tendo tido a coragem de nunca calar as suas denuncias de ser o nazismo uma ideologia fundamentalmente anti-cristã, e que acabou sendo morto por soldados soviéticos quando tentava protejer algumas mulheres da violação. Geza via no Bispo Apor um cintilante exemplo de como o espirito de caridade e de amor ao próximo era comum ao Deus dos judeus e dos cristãos.

Além disso Geza sentia que as desconfianças, as suspeitas e os ódios entre os seguidores de ambas as fés se deviam à incompreensão do papel seminal de Jesus, incompreensão que era causada acima de tudo pela ignorancia e que a ele, como dizia frequentemente, cabia o papel de “esclarecer as coisas”.

Em 1957 o Padre Vermés recebe um convite para ir para Oxford reger a recém criada cadeira de Estudos Judaicos, e começa um periodo de grande produção intelectual que se inicia com a publicação da tradução final para inglês dos pergaminhos, ainda hoje a obra de referencia, e pela revisão da obra monumental de Emil Schurer “História do Povo Judeu na Época de Jesus Cristo”. Segue-se a publicação do seu “Jesus, o Judeu”, para muitos a sua maior obra e um “escandalo” quando foi publicada em 1972, pois segundo o autor: “Hoje todos sabem que Jesus era judeu mas na altura, muito embora fosse conhecido que Jesus tinha alguma coisa a ver com o Judaísmo, pensava-se que Ele fora no entanto algo totalmente diferente”. Aparece depois “Jesus e o Mundo do Judaísmo” e finalmente “A Religião de Jesus, o Judeu”. Após esta trilogia irão surgir “As Várias Faces de Jesus”, onde analisa as diversas maneiras que Jesus é representado no Novo Testamento, e em 2003 “O Autentico Evangelho de Jesus”. Em 1998 publica a sua auto-biografia “Acontecimentos Providenciais” e, já no final da vida, o derradeiro livro: “Os Começos do Cristianismo – De Nazaré a Niceia, AD 30-325”.

Nestas obras Vermés fala do Jesus da História e não do Jesus da Fé, tentando establecer uma ponte entre judeus e cristãos, que viviam num estado de mútua ignorancia. Para os primeiros nada havia a ganhar com o estudo do Novo Testamento e do seu auto- proclamado Messias, nem com o conhecimento da vida dos seus errados seguidores. Os segundos, por seu lado, apagavam totalmente o que Jesus tinha de judeu, e nem o vazio entre o Seu nascimento e a Sua morte na cruz era motivo para explorar o desconhecido.

“Pode-se omitir o lado judeu de Cristo - o que é a praxis da Igreja- mas se se for mais exigente e se se quiser ir às fontes então vai-se chegar à conclusão que há um Jesus que existe antes do Cristianismo”.

“E então se for aceite que se pode conhecer algo sobre Ele, vai ser evidente que se lida com uma personagem totalmente judía, com ideias totalmente judías, cuja religião era totalmente a judaica, e que a sua cultura, objectivos e aspirações só podem ser entendidas no quadro do judaísmo”, esclarece Vermés.

Mas outro acontecimento “providencial” vai ocorrer na sua vida quando conhece uma colega da Universidade e ambos se apaixonam. Vermés não hesita, renuncia ao sacerdócio e contrai matrimónio e irá conhecer a felicidade doméstica, periodo a que chama “the golden years”, até enviuvar em 1993.

Não muito tempo depois do casamento, e após longa e profunda reflexão, decide abandonar o catolicismo e regressar à sua fé ancestral. No entanto nega que tenha havido uma conversão e diz que “simplesmente cresci espiritualmente para além do catolicismo”.

Não frequenta a sinagoga, não segue os preceitos da religião, mas continua crente e quando se senta num lugar tranquilo do seu jardim, afirma que continua a ouvir um Ser Supremo que lhe fala “numa pequena voz”.

Afinal bem forte deve ter sido essa “pequena voz” que o guiou durante toda uma vida e que o levou a legar à humanidade uma obra que é um sublime hino à causa da tolerancia e da paz.





5 Comments

    Author

    manuel.m

    contact@manuel2.com

    Archives

    June 2018
    April 2018
    March 2018
    February 2018
    January 2018
    December 2017
    November 2017
    October 2017
    September 2017
    August 2017
    July 2017
    June 2017
    May 2017
    April 2017
    March 2017
    February 2017
    January 2017
    December 2016
    November 2016
    October 2016
    September 2016
    August 2016
    July 2016
    February 2016
    January 2016
    May 2015
    April 2015
    March 2015
    February 2015
    January 2015
    December 2014
    November 2014
    October 2014
    September 2014
    August 2014
    July 2014
    June 2014
    May 2014
    April 2014
    March 2014
    February 2014
    January 2014
    December 2013

    Click here to edit.

    Categories

    All

Proudly powered by Weebly