A GAZETA DO MIDDLESEX
O ESTRANHO CASO DO
ELÉTRICO SEM TRAVÕES
Em 1967, ano em que escreveu “O Problema do Aborto e a Doutrina do Duplo Efeito”, Philippa Foot, (1920-2010), era já a grande Dama da Filosofia Britânica. Com outras mulheres, Elizabeth Anscombe, Mary Warnock e a escritora Iris Murdoch, (com quem viveu um largo período), ocupou o palco central da intelligentsia Inglesa durante décadas. Depois de Oxford (Sommerville), a sua alma mater e onde foi vice-reitora, atravessou o Atlântico para ensinar nas melhores Universidades Americanas, (tinha a particularidade de ser neta do Presidente Cleveland): Berkeley, Cornell, Princeton e Stanford, tendo voltado depois à Grã-Bretanha onde acabaria a carreira.
Mas como é que um paper publicado numa revista técnica por uma professora universitária especialista no ramo da Ética, que ficou conhecido como O problema do Eléctrico, (trolley em Inglês), rapidamente deu origem a uma febre colectiva chamada Trolleylogia, que contagiou filósofos, psicólogos, neuro cientistas, tomando de assalto campus universitários, faculdades inteiras, publicações académicas, casas de família, leigos e cognoscenti, e isto por todo o mundo ?
“O Problema do Aborto e a Doutrina do Duplo Efeito” tratava da situação dilemática que se punha quando a uma grávida era detectado um tumor no útero, e havia que decidir se seria moralmente legitimo operar, salvando a mulher, mas causando a morte de feto.
A Teoria do Duplo Efeito foi primeiro postulada por S. Tomás de Aquino : É admissível que uma acção continue moralmente boa muito embora tenha efeitos secundários maus. O que não é admissível é que uma má acção seja cometida para que se obtenha um bom resultado.
Seguindo os preceitos de S. Tomás a operação é aprovada, operação que é feita para salvar a mulher, (a boa acção), mas tendo o efeito indesejável de causar a morte do feto, (o efeito secundário mau).
O inverso, matar o feto com meio de salvar a grávida seria, obviamente, condenável. Mas mais adiante regressaremos a S. Tomás e à sua Doutrina com mais detalhe.
Foot para explicar a sua posição dava vários exemplos para ajudar a distinguir entre consequências intencionais e não intencionais das nossas acções, entre fazer e deixar fazer, entre deveres positivos e negativos – o dever de não causar dano em oposição ao dever de prestar assistência.
Entre esses exemplos constava este, que será o cenário A :
“O condutor de um eléctrico vê que à frente estão 5 pessoas atadas aos carris. Os freios deixaram de funcionar, mas ele tem contudo a opção entre nada fazer, e assim causar a morte dessas 5 pessoas, ou accionar uma agulha desviando o eléctrico para um ramal secundário. Acontece que nessa outra linha está também um homem atado aos carris e desviar a composição irá causar-lhe a morte. Que opção deve tomar ? Nada fazer, e a morte de 5 pessoas é inevitável, ou accionar a agulha e matar uma só pessoa?”
Em vez de ser o condutor a ter a responsabilidade da decisão, esta cabia agora a uma pessoa que estando casualmente ao lado dos carris podia accionar um interruptor que faria mudar a agulha e desviar o eléctrico, levando às mesmas consequências do cenário anterior.
Aparentemente os dois cenários são iguais, mas apenas aparentemente. O condutor tem uma responsabilidade profissional em tomar constantemente decisões, e o seu principal dever é garantir a segurança dos passageiros que lhe estão confiados, ao passo que a pessoa que por casualidade está junto à linha não tem esses constrangimentos; logo a decisão do condutor é eticamente mais complexa.
Em vez de ser uma pessoa que casualmente está junto à linha, e a quem cabe a responsabilidade da decisão de desviar ou não o eléctrico, agora essa pessoa está numa passagem aérea exactamente por cima e assiste à marcha do eléctrico em direcção às cinco potenciais vitimas, que estão atadas aos carris. Desta vez não existe nenhum interruptor que desvie a composição para uma linha secundária.
O que há é um homem gordo que se encontra também nessa passagem aérea e ao lado dessa pessoa . A única opção que tem, se quiser que os cinco inocentes não sejam trucidados, é atirar o homem gordo à linha, o que faria parar o eléctrico, evitando o massacre..
Jeremy Bentham e o Dr. Silva
Bentham foi um um filosofo Britânico do Séc. XIX autor de uma corrente da Ética que ficou conhecida por Consequencialismo ou Utilitarismo.
Segundo essa linha, aquilo que define um acto como sendo bom ou mau são as suas consequências. Assim “Bom” seria aquele que fosse “útil” para trazer o máximo de felicidade ao maior numero de pessoas.
Agora atentem noutro cenário, que será o D:
Um médico de um hospital, a quem chamaremos Dr. Silva, tem cinco pacientes em risco iminente de morrer a menos que possam receber um transplante: Rins, pulmões e coração.
O Dr. Silva não prevê que seja possível encontrar dadores a tempo, mas na sua enfermaria tem um doente, um homem ainda jovem e de perfeita saúde que foi internado devido a um pequeno acidente e que está pronto para ter alta. O Dr. Silva decide então leva-lo para a sala de operações e sob anestesia retirar-lhe esses órgãos vitais para os transplantar nos cinco doentes, que assim sobrevivem à custa, obviamente, da vida do jovem acidentado.
Portanto a questão é esta :
Se Bentham está correcto então todos os cenários descritos anteriormente também o estão: Ao sacrificaram um a só pessoa para salvar cinco não fizeram mais do que trazer o máximo de felicidade ao maior numero o que, segundo Bentham, é por definição um acto eticamente bom.
Mas talvez seja altura de trazer à colação um outro peso-pesado de filosofia, e ouvir o que Kant diria sobre este problema:
Segundo ele é errado tratar pessoas como meios para atingir determinados fins, logo o homem atado à linha e o gordo na passagem área, assim como o doente do Dr. Silva, tinham sido usados unicamente como meio para salvar outros, sem consideração pelo seu próprio direito à vida. Quanto aos cinco, eles não tinham nenhum direito particular em serem salvos, o que não quer dizer que não o desejariam ser, nem que posteriormente não ficassem gratos se o tivessem sido. Mas a verdade é que não possuíam nenhum direito inerente a serem salvos. O paciente do cenário D, e os outros, esses sim tinham o direito de não serem deliberadamente mortos para realizar qualquer que fosse o objectivo.
Precisamente para responder à questão em como fazemos a distinção entre o bem e o mal, a Universidade de Harvard lançou em 2003 um estudo online apelando à participação da população, www.moralsensetest.com, na expectativa de conseguir 5.000 participantes. Escusado será dizer que o numero dos que responderam à chamada é hoje de muitas dezenas de milhar. Outro site, www.philosophyexperiments.com publicou um outro inquérito intitulado, Deveria o homem gordo ter sido morto , (referindo-se ao cenário C que anteriormente aqui discutimos), que já deve ter atingido as 300.000 participações. Ambos os testes são em Inglês e impossíveis de traduzir, até porque ao serem completados, o que não dura muito, é seguidamente feita uma análise rigorosa às respostas. Um conhecimento razoável da língua é suficiente para participar mas é de lembrar que não estamos a lidar com inquéritos tipo imprensa do coração. São feitos por psicólogos que, como se diz, estão on top of their game, profissionais altamente qualificados.
Mas voltando ao inquérito de Harvard os resultados podem constituir surpresa : Para 89% dos inquiridos a pessoa que no cenário B está junto à linha agirá correctamente ao accionar o interruptor, fazendo o eléctrico mudar de linha salvando assim os cinco que morreriam se não tivesse agido, mas causando a morte do infeliz atado à linha secundária. Mas apenas 11% concordam que o homem gordo do cenário C deveria ser atirado à linha para salvar as mesmas cinco possíveis vitimas.
Estes resultados mantêm-se consistentes, qualquer que seja a raça, religião, nacionalidade, grupo etário e nível de escolaridade, e mais importante ainda, registam-se entre quem nunca lidou com problemas filosóficos.
Temos assim que 89% dos jurados deste tribunal imaginário votaram não culpado em relação à pessoa do cenário B, mas apenas 11% o fizerem em relação à do cenário C. O desafio é encontrar as diferenças substantivas entre os dois que tenham levado a veredictos tão diferentes.
Uma possível explicação reside no tal Principio do Duplo Efeito de S. Tomás de Aquino, de que já falámos: No cenário B a pessoa não teve a intenção de matar um para salvar cinco, apenas previu essa possibilidade, enquanto a que atirou o homem gordo à linha tinha a intenção de o matar para que cinco fossem salvos. Uma boa acção, no cenário B, teve um efeito secundário mau, o que segundo a Igreja Católica é aceitável. Já no cenário C tratou-se de uma má acção cometida para obter um resultado bom, o que é totalmente condenável.
Mas há outra possível solução para o problema que é muito mais terrena : Como a neuro ciência hoje explica, a parte do cérebro ligada às emoções desempenha um papel mais importante do que a que está ligada a actividades cognitivas. Isto é particularmente verdadeiro quando se trata de violações pessoais da integridade física de outro ser humano, como seria o caso do cenário C, em contraste com violações impessoais, como seria o caso do cenário B no qual, quando confrontados com um principio abstracto, matar um é melhor do que matar cinco, e como a decisão é impessoal, (o interruptor), isso faz com que não exista conflito entre as nossas emoções e a escolha, logo esta é fácil.
A nossa resistência em matar alguém por nossas próprias mãos explica a condenação do acto de atirar o homem gordo da ponte abaixo. Já o accionar um interruptor é tomado como sendo um acto relativamente inócuo. As sociedades formadas por indivíduos cujos cérebros possuem uma marcada aversão a deliberadamente matar alguém têm mais possibilidades de sobrevivência, pelas razões óbvias, o que com o tempo se tornou num tabu cultural passado de gerações em gerações.
A trolleylogia continua pujante e cada vez que são levantadas novas questões estas trazem consigo ainda outras questões. É verdade que nenhum de nós estará com toda a probabilidade na situação de ter de decidir casos de vida ou de morte mas, quer sejam grandes ou pequenas decisões, gostaríamos que elas fossem eticamente correctas. E é isso que o problema do trolley faz, ao lembrar-nos que há uma maneira “boa” e outra “má” de enfrentar os dilemas que a vida nos coloca, o que nos faz reflectir, e daí a sua popularidade. E já dizia Aristóteles : ” A vida não examinada não vale a pena ser vivida.”
Uma Merecida Pausa
Para os leitores da Gazeta. Mas como o que é bom sempre acaba, ela estará de volta em Janeiro, pujante na sua vontade em testar a inexaurível paciência de quem por aqui passa. Entretanto ficam os votos de
Feliz Natal e Bom Ano Novo