A GAZETA DO MIDDLESEX
BREEEEEEXIT !
Ano e meio, dezoito meses, setenta e oito semanas. O tempo que decorreu desde o dia do Referendo que deu a vitória ao Brexit. Por aqui estamos como o jovem Fabrizio del Dongo, cuja história contei uns posts atrás: Ele não sabia se aquilo a que tinha assistido fora uma batalha e nós também não sabemos se as negociações para o Brexit não passam de uma farsa, tal o absurdo que nos é servido diariamente, ou uma espécie de combate de luta livre em que os adversários fingem agredir-se para gáudio da assistência, quando já está previamente combinado quem vai ganhar, o quê e como.
Três eram os pontos prévios sobre os quais teria que haver acordo para que as negociações pudessem avançar para a fase seguinte: A questão do dinheiro; a questão dos Direitos dos cidadãos da UE vivendo na Grã-Bretanha e dos Britânicos vivendo na Europa; e a questão da fronteira entre a da Republica da Irlanda e a Irlanda do Norte.
A Fronteira
Tudo parecia estar resolvido a contento quando Theresa May embarcou para Bruxelas na Segunda-feira 4 de Dezembro ao encontro do deplorável homenzinho que a esperava exultante para com ela assinar o histórico acordo. Notável a mudança do estado de espírito desse homenzinho: De intransigente defensor das posições da Europa que eram, segundo dizia, inegociáveis, passou num instante a ser de uma total maleabilidade e a estar aberto a qualquer cedência.
Tantas são as histórias que sobre ele se contam que se torna difícil saber por onde começar: Na União Europeia já foi tudo o que se podia ser: Desde a Primeiro-Ministro do seu pequeno país, (cargo a que teve de se demitir devido a um escândalo de enormes proporções), a Presidente do Eurogrupo, para ser actualmente Presidente da Comissão Europeia. Ele é, segundo o Suddeutsche Zeitung, “o mestre do engano”, aquele que com o seu comportamento está a destruir o que resta da confiança que os Europeus ainda depositam nas suas Instituições. Aliás o homenzinho já admitiu mais do que uma vez que “os acordos e os compromissos negociados nas reuniões ao mais alto nível da UE devem ser protegidos do escrutínio publico, usando a mentira se necessário”. “Quando se trata de assuntos importantes, temos de mentir”, afirmou noutra ocasião. Numa reunião do Movimento Europeu, um grupo de tendências federalistas, voltou ao assunto admitindo que frequentemente tinha que “mentir” e que as reuniões do Eurogrupo deviam ser debates “secretos e opacos”. Os Portugueses devem estar lembrados do que se passou na eleição para Secretário Geral da ONU ganha por António Guterres: Pela primeira vez o processo da eleição foi publico e em várias fases o que não impediu que o homenzinho, a escassos dias da votação final, tenha aparecido a apadrinhar freneticamente uma tal Kristalina, uma candidata caída de para-quedas e que não tinha feito parte do processo eleitoral. A vontade de deitar a mão ao cargo de Secretário Geral da ONU foi maior que o eventual pudor que tivesse em causar escândalo devido ao seu descaramento. Já na recente eleição para Presidente do Eurogrupo ganha por Mário Centeno o cenário repetiu-se: O seu adversário na votação final foi o Ministro das Finanças do país do homenzinho. Podemos imaginá-lo correndo furtivo durante a noite pelos corredores de Bruxelas traficando apoios para o seu candidato. O queijo era grande e saboroso: Simultaneamente a Presidência da Comissão e a do Eurogrupo. Felizmente voltou a falhar.
Mas nessa Segunda-feira afinal o que aconteceu foi o anti-climax : Theresa May regressou a Londres de mãos a abanar e o homenzinho descoroçoado viu fugir-se-lhe o prémio de tanto trabalho de bastidores. E tudo por causa de uma simples frase constante do acordo de 15 páginas que esteve prestes a ser assinado: “ … A continued regulatory alignment between Ulster and the Republic of Ireland...”. Ou, em bom Português : “Um continuado alinhamento regulamentar entre a Irlanda do Norte e a Republica da Irlanda”, o que queria dizer, desta vez em Português corrente, que para não existir uma fronteira física entre as duas Irlandas, a do Norte teria de permanecer após o Brexit dentro do Mercado Único, ( “um continuado alinhamento regulamentar”), o que levaria à criação de uma fronteira sim, mas entre esta parte da Irlanda e a Grã-Bretanha, um verdadeiro anátema para os nacionalistas Norte-Irlandeses que não aceitam a mínima divergência entre eles e o resto do Reino Unido.
Ora, em beneficio dos mais distraídos, lembremos que quem manda é o DUP, um partido da Irlanda do Norte de direita radical que a troco da módica quantia de um bilião e meio de Libras aceitou apoiar no Parlamento de Westminster o Governo minoritário de Theresa May. É ter na mão o proverbial queijo e a respectiva faca: A líder do DUP, Arlene Foster, logo que teve conhecimento do texto não perdeu tempo a telefonar para Bruxelas dando conta à aterrorizada Primeira-Ministra que vetava o acordo, não tendo restado a esta senão regressar a Londres com aquilo que vocês sabem entre as pernas.
Seguiram-se dias de negociações frenéticas em que a sede do Governo Britânico, o sitio onde tudo se decidia, foi em Belfast e não em Londres. Segundo a expressão popular, agora havia mesmo que dar a volta ao texto com várias soluções a serem propostas, (“cooperação regulamentar” ou ”equivalência regulamentar” o que poderia sugerir linhas paralelas e não convergentes), para serem imediatamente rejeitadas, ou por Arlene Foster, ou pelo Taoiseach, como é chamado o Primeiro-Ministro da Republica da Irlanda, (pronuncia-se mais ou menos “tisoq”).
Bem se esforçou Theresa May em explicar que “alinhamento regulamentar” se referia a todo o Reino Unido e não apenas à Irlanda do Norte, o que bastou para fazer entrar em fúria os seus Ministros adeptos de um Brexit radical que viam na frase um alçapão para que afinal não houvesse mesmo Brexit, e o que os levou a exigir que em vez de “alinhamento” estivesse escrito “divergência regulamentar” o que tornaria impossível aquilo que Theresa May procurava desesperadamente evitar: Que houvesse uma fronteira física entre as duas Irlandas.
Nunca a semântica foi tão importante, nunca o sexo dos anjos foi discutido com tanto ardor, assistindo-se a um novo e completo debate teológico sobre o significado da frase “completo alinhamento com as regras do Mercado Único e da União Aduaneira” a consumir os mais brilhantes cérebros da Nação.
O documento que foi finalmente assinado por May e por Junker na madrugada de 8 de Dezembro não foi um contrato, nem um tratado, mas apenas um “Relatório Conjunto” sobre os “progressos feitos nas negociações” que a serem julgados “suficientes” poderiam permitir passar à fase seguinte.
Mas chame-se o que se quiser porque, no que se refere à fronteira entre as duas Irlandas, ele merece figurar em todos os tratados sobre Ciência Política como o exemplo perfeito de ambiguidade, um texto tão completamente expurgado de significado que chega a ser genial: Se fosse em lorem ipsum teria mais conteúdo.
Os Direitos
Era uma das chamadas “linhas vermelhas” traçadas pela UE que exigia que os direitos dos cidadãos Europeus residentes no RU, ou dos Britânicos residentes na UE, jamais pudessem ver-se diminuídos devido ao Brexit. Mas não foi isso que foi acordado por May e por Juncker: O papel do TJE como garante desses direitos foi severamente limitado aos oito anos seguintes à saída formal da Grã-Bretanha. Após esse período cessa a protecção jurídica desse Tribunal e esses Direitos podem ser livremente revogados, no todo ou em parte, como consta expressamente no texto do acordo assinado.
Imaginemos a situação de um Português, ou de um Alemão por exemplo, residentes e trabalhando na Grã-Bretanha e que tenham ultrapassado a metade da sua vida activa: Dentro de oito anos estarão sujeitos à vontade do Governo Britânico da altura para poderem prosseguir vivendo no país. Uma incerteza terrível para quem já se tornou demasiado velho para refazer a sua vida algures. Mas a parceria May/Juncker foi mais longe: Acabará a mobilidade para os cidadãos Britânicos residentes na UE. Um Inglês que viva em Portugal e que se ausente por mais de 183 dias perderá o seu estatuto de residente. Após o Brexit será tratado como um cidadão não-comunitário e se quiser então regressar não terá os direitos que hoje possui. O mesmo se aplica evidentemente aos cidadãos da União Europeia que trabalhem no Reino Unido.
O Dinheiro
Nos quarenta anos que A Grã-Bretanha levou como membro da UE muitos foram os compromissos financeiros assumidos e que não cessarão com a saída. O dever de saldar essas dívidas foi um dos primeiros pontos a ser contencioso logo no inicio das negociações. Números concretos nunca foram declarados, mas foi largamente comentado por fontes próximas do lado Europeu que a verba se situaria entre os 60 e 100 biliões de euros. Esta questão foi recebida com escárnio pelo Governo Britânico e pela imprensa de direita hostil à UE,(que é quase toda).
Mas, com as negociações encravadas, a dura realidade acabou por se impor e a impossibilidade de a Grã-Bretanha chegar a um acordo de comércio com Bruxelas até Março de 2019 foi por demais evidente para poder ser negada, mesmo pelos mais ferozes adeptos do Brexit.
Havia que “relançar” o processo, (não com uma cedência, note-se), e em Setembro passado Theresa May levou a reboque meio Governo até Florença onde faria um discurso “histórico”.
Perguntam-se os leitores porquê Florença e não Birmingham ou Bradford? Boa pergunta à qual não se encontrou até agora resposta. Talvez pela ligação da cidade da Toscana ao Renascimento, coisa que parecia casar bem com “relançamento” ? O que é certo é que, como a seguir se verá, nunca se tinha realizado tão bizarra função em Santa Maria Novella, esse venerável local com tantos séculos de História .
Theresa May exigiu então, ( O Leão Britânico nunca pede, exige !), que após a saída formal da UE se seguiria um “período de transição” com a duração máxima de dois anos durante o qual tudo se manteria mais ou mesmo na mesma, excepto a jurisdição do TJE e a livre circulação de pessoas, (mas não a de bens), tempo julgado mais que suficiente para selar um acordo de livre comércio com Bruxelas nos termos, evidentemente, estipulados pelo Governo de S.M.
A Primeira-Ministra, magnificente e num gesto de boa vontade, atirou então para cima da mesa a bolsa das Libras. Vinte biliões delas. Ocorreu porém a muita gente que essa seria, em qualquer dos casos, a contribuição Britânica devida por dois anos como membro da UE.
Daí para cá negociou-se ferozmente qual a quantia global a pagar pela Grã-Bretanha e parece que Mrs.May acedeu a pagar um pouco mais e que o querido Jean-Claude, esse pilar da verdade e honestidade esse autentico farol da honra e integridade, aceitou receber bastante menos do que os 60 biliões de Euros que era a quantia mínima aparentemente estipulada pela UE.
Eu digo “aparentemente” porque realmente ninguém sabe: Não sabem os Europeus e não sabe nenhum dos 29.3 milhões de contribuintes Britânicos que vão que ter que pagar a factura. “Aparentemente” não querem que preocupemos as nossas pobres cabeças com questões de dinheiro quando há coisas mais bem alegres e ternurentas em que nos ocuparmos como, por exemplo, o próximo enlace do Príncipe Harry. E , para já, as coisas ficaram neste pé.
Vitória, Vitória !
Desbloqueadas as negociações e passando-se finalmente à fase seguinte das negociações Theresa May regressou a Londres em apoteose !
Perdoem-me o exagero, mas aquela chegada triunfal fez-me lembrar o da Mrs. Thatcher após a guerra das Malvinas. A mesma Mrs. Thatcher que até agora reinava em sublime solidão no Olimpo mas que, segundo os Conservadores em delíquio, irá a partir de agora ter como companhia a Mrs. May, depois da sua também retumbante vitória sobre os pérfidos Europeus que tiveram Frau Merkel a fazer o papel de General Galtieri e Emmanuel Macron no de General Videla.
Estamos a caminho ! (do Brexit)
Um aperto de mão histórico selou um
passo vital para a nossa saída da UE
o Brexit !
Depois de assinado em 8 de Dezembro o documento por May e Juncker há que dizer que ele não obriga, longe disso, as partes, pois não passa de um relatório, em si condicional e provisório, sobre o progresso das negociações e que é um documento notável apenas pela sua “ambiguidade criativa”. No que toca à questão da fronteira entre as duas Irlandas Theresa May conseguiu um truque à Houdini : Dar garantias a todas as partes, mesmo quando elas se auto-excluem. Para os Conservadores defensores do Hard Brexit o texto assinado conserva suficiente flexibilidade para que os seus objectivos possam ser atingidos . Para os partidários de uma ligação forte à UE nele nada consta que impeça que continuem optimistas.
CANADÁ OU NORUEGA ?
(Ou as “linhas vermelhas” de Theresa May)
Nem um nem outro, responde o Governo de Mrs. May. Não existe nenhum outro modelo de FTA,( Free-Trade Agreement, Tratado de Comercio Livre), que possa ser seguido, responde Michel Barnier, o Negociador-Chefe pela UE. Então que se invente um que seja no interesse da Grã-Bretanha, responde o Governo de Londres.
Mas para entendermos o que está em jogo temos de esclarecer que a Primeira-Ministra impõe condições, a que chama “linhas vermelhas”, que não podem ser ultrapassadas nas negociações com Bruxelas. Elas são essencialmente quatro: O fim da livre circulação de pessoas, (mas não de bens); o fim da jurisdição do Tribunal de Justiça Europeu sobre o Reino Unido; o fim das contribuições monetárias Britânicas para a UE; o fim de ter de cumprir normas e regulamentos aplicáveis aos restantes 27 membros, (segurança alimentar, segurança no trabalho, pescas, e uma infinidade de outros tendentes a criar uma “convergência regulamentar” entre os países da União, o que no jargão bruxelense se chama o “acquis”).
Ora o acordo com a Noruega, (e de igual modo, com pequenas diferenças, aquele feito com a Suíça e o Lichenstein), ultrapassa todas elas: A Noruega, se não pertence de jure pertence de facto à UE. Tem todas as obrigações de membro, incluindo contribuir para o orçamento e a livre circulação de pessoas, mas não tem direito a voto nas deliberações comunitárias. Tudo impossível de engolir para o Governo de Mrs. May.
Já o acordo com o Canadá parece à superfície ser mais fácil de ser aceite pelos Brexeteers, pois sendo um FTA puro apenas diz respeito à livre circulação de bens. É de uma extraordinária complexidade no entanto, (levou sete anos a negociar), mas, e crucialmente, não contempla os produtos financeiros o que seria fazer com que a City, (essa galinha dos ovos de ouro da economia Britânica), perdesse o chamado “passaporte” para negociar livremente produtos financeiros com os países da UE. Logo outra impossibidade.
Diz a Primeira-Ministra que a UE tem de oferecer à Grã-Bretanha um tratado “Canadá +”, um que inclua os produtos financeiros. É como se Mrs. May fosse às compras ao supermercado e tirasse das prateleiras apenas aquilo que conviesse à Grã-Bretanha. Sem surpresa Michel Barnier dá uma nega à Primeira-Ministra: Sem ceder no que toca às suas “linhas vermelhas” a Theresa May só resta negociar nos termos da WTO, a organização de comercio mundial, e sofrer o inevitável cataclismo económico que se lhe seguirá.
NUMA ESPÉCIE DE CONCLUSÃO
Em Março de 2019 o Reino Unido deixará de ser membro da União Europeia, muito embora continue a fazer parte do Mercado Único e da União Aduaneira durante um período de transição que terá a duração de dois anos. Nesse tempo o Reino Unido deixará de poder influenciar as decisões comunitárias no que toca ao comercio e às leis e regulamentos que venham a ser aprovados pelas instâncias da UE, que no entanto será obrigado a observar.
Existirá uma necessidade premente de fazer simultaneamente duas coisas incompatíveis:
Uma é negociar FTA's com todos os países com que pretenda ter relações comerciais no futuro,( os actuais, celebrados sobre os auspícios da UE, caducarão automaticamente com o Brexit), o que significa a necessidade de, caso a caso, conseguir uma harmonização entre as regras Britânicas e as dos outros países.
Outra é necessidade de negociar ao mesmo tempo com a UE outro FTA, ( UE é o mercado a que se destinam mais de 50% das suas exportações), o que impõe, para que a negociação seja bem sucedida, uma convergência de facto entre as posições Britânicas e as leis que regulam o Mercado Único.
Esta contradição leva inapelavelmente que para a Grã-Bretanha seja impossível estabelecer acordos de comercio com a UE e, ao mesmo tempo, com outros países cujas regras se afastem das Europeias. O exemplo mais gritante é o dos EUA, país que tem uma economia muito menos regulada que a de Europa.
“Decision Time !” Chegou a altura de fazer opções: Ou negociar com a UE, e ter um soft Brexit, ou optar pelo comercio com outros países e cair no Hard Brexit, com as suas tarifas alfandegárias entre a Grã-Bretanha e a Europa, (que vão de 10 a 40% , consoante sejam alguns produtos manufacturados ou produtos agrícolas).
A primeira é a total impossibilidade de, em dois anos, firmar um acordo entre a Grã-Bretanha e a UE: O CETA, (o acordo com o Canadá levou sete anos a negociar), o que implica que o período de transição terá de ser muito superior. Entre 5 a 7 anos, são as previsões mais optimistas, o que é inaceitável para a maioria dos Ministros Britânicos.
A segunda é a impossibilidade de o sonho cor-de rosa de Theresa May se tornar realidade: A de um acordo com a UE de tal maneira favorável para o Reino Unido que ponha em causa a integridade do Mercado Único.
Michel Barnier foi muito claro: Na realidade não há nada a negociar. O acordo será aquele que a UE quiser, e o Reino Unido, ou aceita, ou terá um Hard Brexit.