A GAZETA DO MIDDLESEX
Como é habitual à noite houve fogo de artificio e grande foguetório, naquilo que mais se aproxima a uma noite de S. João britânica, sem sardinhas nem martelinhos evidentemente.
Felizmente que as intenções de Fawkes foram descobertas a tempo e para ele as coisas correram mal e teve o fim que se imagina. Ficou porém a tradição de se comemorar a 5 de Novembro o falhanço da que ficou conhecida como a “Conspiração da Pólvora”.
Glosando o tema, George Monbiot escreveu um artigo em que fala de uma outra “conspiração da pólvora”, esta bem mais actual, e que foi publicado ontem no “The Guardian” e que a seguir com prazer se transcreve.
O GOVERNO BRITÂNICO LIDERA UMA CONSPIRAÇÃO DA
POLVORA CONTRA A DEMOCRACIA
por George Monbiot
Quase ninguém tinha ouvido falar do Acordo para o Comércio e Investimento Transatlântico (TTIP) que se negociava em segredo entre a UE e os EUA, excepto os próprios negociadores. Nessa altura temia que ninguém viesse a saber alguma vez desse Tratado. Mesmo o nome parecia ter sido feito para não despertar qualquer interesse. E se escrevi sobre ele foi apenas por uma razão : Para um dia poder dizer aos meus filhos que tinha tentado fazer alguma coisa.
Para minha admiração esse artigo tornou-se viral. Como resultado da reacção do público e do empenhamento de vários activistas, a Comissão Europeia e o Governo Britânico foram obrigados a prestar esclarecimentos. A petição 'Stop TTIP' atingiu até agora 750.000 assinaturas; a petição '38 Degrees' tem 910.000 signatários. No mês passado realizaram-se 450 acções de protesto em 24 países membros. A Comissão viu-se forçada a abrir o assunto à discussão pública o que resultou na participação de 150.000 cidadãos. Nunca mais se diga que as pessoas não são capazes de debater assuntos complexos.
Mas no entanto nada está definitivamente ganho.
As Empresas e os Governos - liderados pelo Reino Unido – mobilizam-se para abafar esta revolta. Mas a sua posição enfraquece cada mês que passa. O ministro Britânico responsável à altura pelo dossier, Ken Clarke, em resposta ao meu artigo afirmou que “nada seria mais insensato” do que tornar publica a posição da União Europeia nessas negociações, como eu tinha proposto. Mas no passado mês a Comissão foi obrigada a fazer isso mesmo. Parecia que a luta contra o TTIP redundaria numa vitória histórica do publico contra o poder das Corporações.
O problema central é aquilo que os negociadores chamam o acordo para a resolução de disputas Investidor-Estado (ISDS). Segundo o tratado em negociações, as grandes Corporações poderiam levar os Governos a responder perante um painel arbitral composto por advogados de negócios no qual o público não seria representado e cujas decisões não poderiam ser revistas judicialmente.
Já actualmente, e devido à introdução desse esquema ISDS em pequenos tratados bilaterais de comercio, as grandes companhias estão envolvidas numa orgia de litigação cujo objectivo é eliminar qualquer lei que possa prejudicar os futuros lucros que antecipam. A empresa tabaqueira Philip Morris levou presentemente a tribunal os Governos do Uruguay e da Austrália por terem levado a cabo campanhas anti-tabaco.
À empresa de petróleos Occidental foi concedida uma indemnização de 2.3 biliões de dólares a ser paga pelo Governo do Equador por ter impedido perfurações no Amazonas, quando foi descoberto que esta companhia tinha infringido a lei do país. A sueca Vattenfall processou o Governo Alemão por este ter terminado com as centrais nucleares. Uma companhia Australiana exige uma indemnização de 300 milhões de dólares ao Governo de El Salvador por este ter recusado licença para uma exploração mineira de ouro que iria provocar a contaminação das aguas publicas.
O mesmo mecanismo da TTIP poderia ser usado para impedir que o Governo do Reino Unido, caso tomasse a decisão de reverter a privatização dos caminhos de ferro ou do SNS, ou de defender a saúde pública ou o ambiente da ganancia das corporações, pudesse levar por diante essas medidas.
Os advogados de negócios com lugar nesses painéis, apenas respondem perante quem os contratou para defenderem os seus interesses, tendo sido muitas vezes funcionários das grandes corporações contra cujos interesses é suposto lutarem. Como afirmou um deles:
“ Quando acordo de noite e penso sobre a arbitragem nunca cesso de me surpreender em como Estados Soberanos aceitarem submeter-se a ela... A três indivíduos é confiado o poder de alterar, sem qualquer restrição ou possibilidade de apelo, as decisões tomadas por Governos ou Tribunais, e leis e regulamentos aprovados em Parlamentos Nacionais.”
Tão revoltante é esta situação que até mesmo o “The Economist”, normalmente o grande defensor do poder das empresas e dos acordos comerciais, saiu agora contra o TTIP tendo afirmado que o mecanismo para resolver conflitos entre Investidor-Estado “é uma maneira das multinacionais enriquecerem à custa das pessoas vulgares.”
Quando David Cameron e os media controlados pelo poder financeiro encetaram uma campanha contra a candidatura de Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão europeia, afirmaram que este era uma ameaça à soberania Britânica, o que constituiu numa perfeita inversão da realidade. Juncker, apercebendo-se da mudança da opinião publica, prometeu no seu manifesto: “Não sacrificarei a Segurança, a Saúde, o Estado Social e a protecção da privacidade dos Europeus...no altar do livre comercio... nem jamais aceitarei que a jurisdição dos Tribunais dos Estados membros seja limitada por regimes especiais que regulem disputas Investidores-Estados.”
O crime de Juncker foi o de não ceder suficientemente a nossa soberania em favor dos advogados de negócios, tal como Cameron e os barões da comunicação social exigiam.
Juncker está agora sob intensa pressão. No mês passado, 14 Estados membros enviaram-lhe em privado uma carta sem informarem os respectivos Parlamentos, (carta que foi conhecida há poucos dias devido a uma fuga de informação), onde lhe era exigida a aceitação do ISDS, (o referido mecanismo arbitral-n.t.). E quem lidera esta campanha ? O Governo Britânico. É difícil de entender o grau de duplicidade envolvida: Ao mesmo tempo que se diz estrenuo defensor da nossa soberania a ponto de considerar abandonar a UE, o nosso Governo está preparado para sacrifica-la em nome dos lucros das grandes corporações. Cameron é o líder de uma conspiração da pólvora contra a Democracia.
Ele e os seus ministros são incapazes de responder a uma clamorosa e óbvia questão:
O que é que está errado com os Tribunais? Se as corporações quiserem processar os Governos já têm inteira liberdade para o fazer através deles, como aliás toda a gente. Certamente que com os seus vastos recursos financeiros não estarão em inferioridade nesse palco. Qual a razão para ser-lhes permitido recorrer a um sistema legal paralelo a que ninguém mais tem acesso ? Que terá acontecido ao principio da igualdade perante a lei ?
Se os Tribunais têm o poder para privar os cidadãos da sua liberdade, porque razão não o têm quando se trata de negar futuros lucros às grandes companhias ?
Enquanto esta pergunta não obter resposta pelos defensores do TTIP, então nada mais poderá ser dito a respeito.
Diferentemente de outros tratados, este foi exposto à luz do dia pela acção de activistas, e quanto mais exposto está mais encolhem quaisquer possíveis argumentos em sua defesa. A luta que avizinha será dura, e o resultado final longe está de ser garantido, mas a minha convicção é que desta vez ganharemos.
George Monbiot
(www.monbiot.com)