A GAZETA DO MIDDLESEX
CUI BONO ?
“...identidem in causis quaerere solebat, cui bono fuisset ? ”
“ O famoso Lucius Cassius, aquele que o povo de Roma tinha na conta de ser um honesto e sábio Juiz, tinha por hábito perguntar vezes sem conta: A quem aproveita ? “
Estas palavras de Cícero chegam até nós quase dois mil anos depois de terem sido proferidas, quando este defendia o jovem Roscio Amerino que vinha acusado de assassinar o próprio pai.
Cícero começou as suas alegações finais chamando a atenção do Tribunal para a falta de provas que corroborassem a acusação, e a falta de motivo que levassem o réu a cometer o crime. Num discurso apaixonado, em que descreve uma trama de corrupção e intriga, Cícero apresenta em seguida Magnus e Capito como os únicos verdadeiros beneficiários pela morte do velho Roscius.
No final o jovem Roscio Amerino foi ilibado e saiu em liberdade. A defesa de Cícero ficou nos anais da Justiça e a sua pergunta tem hoje mesma força de então : Cui Bono ? A quem aproveita ?
A 4 de Março passado um ex-espião Russo e a filha foram vitimas de uma tentativa de assassinato na belíssima cidade de Salisbury, no Sul de Inglaterra. Podemos afirmar com toda a certeza que o crime não aproveita nem ao povo Britânico nem ao povo Russo. É também muito difícil encontrar uma narrativa credível que culpe um dos Governos pelo acontecido, sem que se saiba que proveito poderiam dele tirar.
Quem gosta de Filosofia está preparado para lidar com perguntas, talvez melhor do que com respostas. Respostas é o que os leitores não encontrarão na breve resenha dos acontecimentos que aqui se faz. Fica ao cuidado de cada um tentar encontra-las.
Em 1993, Sergei Skripal, Coronel do GRU, o serviço de informação militar da Rússia, é colocado na Embaixada de Madrid. Pouco tempo depois é contratado como espião pelo serviço secreto Britânico MI6. A troco de elevadas quantias começa a passar informação confidencial que irá comprometer a segurança de dezenas de colegas seus que operavam no Ocidente.
Regressado a Moscovo continua a sua actividade de espião até 2004, altura em que é descoberto pela contra-espionagem Russa e preso. Julgado em 2006 é condenado a uma longa pena de prisão.
Em 2010 é feita uma troca de espiões. Desta vez não no Checkpoint Charlie em Berlim, como no auge da guerra fria, mas no aeroporto de Viena. Skripal faz parte dessa troca e vem a estabelecer residência em Inglaterra.
A troca de espiões obedece a um protocolo que foi sempre respeitado por ambos os lados desde o final da II Guerra, protocolo esse que garante imunidade vitalícia aos espiões que tenham sido objecto de troca.
Skripal compra uma casa na cidade e vive abertamente sob o seu nome verdadeiro. Junta-se-lhe a Mulher, que vem a morrer de cancro em 2011. O filho vem também a falecer em 2017 de causas naturais. Estão ambos sepultados num dos cemitérios de Salisbury. Em Moscovo fica a filha, Yulia, que visita regularmente o Pai. Nada parece poder perturbar esta normalidade até ao começo deste mês.
A 3 de Março a filha chega de Moscovo para uma habitual visita.
No dia seguinte, 4 de Março, ambos usam o carro de Skripal para se dirigirem ao centro de Salisbury. Às 13.40 o BMW é deixado no parque de estacionamento do supermercado Tesco. Caminhando dirigem-se a um Pub que está curta distancia e onde tomam uma bebida. Também perto está o restaurante italiano Zizi onde chegam às 14.20. Tomado o almoço saem do Restaurante às 15.35. A pé dirigem-se a um parque distante apenas alguns minutos. Às 16.15 são encontrados inconscientes num banco desse parque. Um policia que lhes tenta acudir é contaminado pela mesma substancia tóxica e também em estado critico é levado para o hospital ao mesmo tempo que os Skripal,.
Os médicos não conseguem identificar o agente tóxico que os vitimou. Uma amostra é levada para o ultra secreto centro para a guerra química do Exercito situado em Porton Down, localidade que fica a curta distancia de Salisbury.
A 5 de Março o deplorável Boris Johnson, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha, menciona pela primeira vez a Rússia como a “possível” culpada pelo atentado.
Dois dias depois, a 7 de Março, vem a confirmação dos laboratórios de Porton Down que se trata de um “nerve agent” chamado novichok, o que em Russo quer dizer “o recém chegado”.
Até agora os mais letais agentes tóxicos conhecidos que actuam sobre o sistema nervoso central, e que podem apresentar-se sob a forma liquida, em pó ou gás, eram o Sarin, descoberto na Alemanha nos anos trinta, o VX desenvolvido nos anos cinquenta precisamente em Porton Down, e o novichok que foi sintetizado na década de setenta na antiga União Soviética. A informação disponível diz que este ultimo é cerca de seis vezes mais letal que o VX, que por sua vez será muitas vezes mais mortal que o Sarin. A mesma informação afirma que o novichok é indetectavel, e que contra ele são ineficazes os mais sofisticados meios de defesa: Nem mascaras nem fatos protectores oferecem garantias de escapar a uma morte quase instantânea a quem seja exposto à sua acção.
Temos um exemplo recente da acção destes agentes tóxicos quando Kim Jung-nam, o irmão de Kim Jung-un, o líder da Coreia do Norte, foi morto em 13 de Fevereiro de 2017 no aeroporto de Kuala Lumpur. Sabe-se que aqui foi usado o VX e que, embora a vitima tivesse consigo 12 ampolas auto-injectaveis de atropina, a morte foi demasiado rápida para que pudesse recorrer ao antídoto.
No dia 12 chegam cerca de 200 militares de um Regimento especializado em guerra química com o respectivo equipamento. O publico é aconselhado a lavar toda a roupa e aquela que normalmente seria limpa a seco deve ser encerrada em sacos de plástico bem fechados.
No mesmo dia a Primeira-Ministra discursa no Parlamento acusando a Rússia de ser “muito provavelmente” responsável pelo ataque em Salisbury. Theresa May faz em seguida um ultimato ao Governo Russo dando um prazo que terminaria às 24 horas do dia seguinte para que desse explicações cabais sobre os acontecimentos.
A 13 de Março são já 1000 os elementos do Exército e das forças de segurança em acção em Salisbury, que fica em estado sítio, com até as campas dos familiares de Skripal a serem investigadas. Ultrapassado o prazo dado à Rússia, e sem resposta satisfatória, Theresa May decreta a expulsão de 23 diplomatas russos, (que diz serem na realidade “espiões”), e o boicote pelos membros de Governo e pela Família Real ao campeonato do Mundo de futebol a realizar no próximo Verão em Moscovo. Alguma Imprensa compara May com Margaret Thatcher, escrevendo que os acontecimentos de Salisbury serão para a primeira o que a guerra das Malvinas foi para a segunda.
Entretanto as investigações prosseguem : Vem a saber-se que foram encontrados vestígios do agente tóxico no Mill Pub, o local da primeira paragem dos Skripal no centro da cidade, e que a mesa em que almoçaram no restaurante Zizi estava de tal maneira contaminada que teve de ser destruída. É portanto possível concluir que as vitimas foram atacadas antes das 13.50, hora de chegada ao Pub, e que decorreram cerca de 2h15 até ficarem inconscientes no banco do parque. Ganha peso a hipótese de o agente tóxico ter sido colocado no sistema de ar condicionado do carro e que tenha sido trazido de Moscovo pela própria filha de Skripal. Com este timeline passa a ser admitido que o agente tóxico usado teria de ser um novo tipo de novitchok até agora desconhecido e de acção lenta.
No dia 18 Vladimir Putin é reeleito Presidente da Federação Russa, resultado esperado uma vez que sondagens feitas antes destes acontecimentos lhe davam 65% de intenções de voto, tendo acabado por receber 75%.
Imediatamente, e como retaliação pela medidas tomadas pelo Governo Britânico, decreta a expulsão de 23 diplomatas, (não é feita referencia se verdadeiros, se falsos), o fim das actividades do British Council e o fecho do Consulado em S. Petersburgo.
A 19 Theresa May pede o auxilio da Nato dizendo estar o país a ser vitima de agressão externa. É porém considerado não estarem reunidas as condições previstas no Artº 5 da Aliança e o pedido não tem seguimento. Recebe no entanto o apoio de Merkel e de Macron. O policia que tinha tentado ajudar os Skripal tem alta do Hospital.
A 21, o inenarrável Boris Johnson diz num discurso que Putin é o novo Hitler, e que os acontecimentos de Salisbury são equiparáveis ao incêndio do Reichstag de 1939, que serviu de pretexto para a invasão da Polónia. Para os Russos, com os seus 25 milhões de mortos combatendo os Nazis, não pode haver insulto mais infame. Para os Britânicos é a demonstração que não há baixeza que Boris não seja capaz, e vergonha a que nos poupe.
A 23 reúnem-se os chefes de Estado e Governo em Bruxelas. São aprovadas as mais importantes medidas pedidas por May, e a passagem à fase final das negociações sobre o Brexit é aprovada. Os 27 países afirmam o seu apoio ao Reino Unido e a sua condenação da Rússia por ser, nas palavras da Primeira-Ministra, highly likely responsável pelo envenenamento dos Skripal.
Em Salisbury os investigadores voltam a pesquisar o carro das vitimas e o banco do parque onde foram encontrados inanimados vinte dias antes é cuidadosamente removido para voltar a ser inspeccionado. O publico é mais uma vez aconselhado a lavar as roupas que tenham sido usadas na altura dos acontecimentos.
Isto Não é uma Conclusão
Com o colapso da União Soviética, e com o caos que se seguiu, no Ocidente houve o temor que as armas químicas caíssem nas mãos de terroristas. Segundo vários analistas os receios eram fundados, com as instalações onde se fabricavam a serem meramente abandonadas por falta de pagamento aos funcionários. Uma das maiores dessas instalações, que era responsável pelo fabrico do novichok, estava situada em Shikhany, na Rússia Central, sendo o produto depois armazenado e testado em Nukus, no Usbequistão. Na confusão geral, e sem meios próprios, os Russos aceitaram a que fossem os Americanos a neutralizar e a descontaminar esses depósitos.
Uma história parece dar credibilidade à possibilidade de algum desse agente tóxico ter acabado em mãos erradas: Em 1995 um magnata Russo chamado Ivan Kivelidi e a sua secretária foram envenenados por um desses agentes tóxicos que tinha sido colocado no telefone do escritório. Um sócio acabou por ser admitir ter comprado essa substancia através de um intermediário, que por sua vez o teria adquirido a um funcionário de um laboratório estatal envolvido no fabrico do novichok. Esse funcionário, de nome Leonard Rink, admitiu vender essas substancias a fim de pagar dividas.
O próprio cientista que chefiou a equipa responsável pela criação do novichok, Vil Mirzayanov, desertou nos anos 90 para os Estados Unidos onde continua de boa saúde, tendo feito recentemente declarações publicas sobre o assunto. Não parece credível que não tenha partilhado com os seus anfitriões os segredos da profissão.
Em 2017 o Governo da Federação Russa declarou que o seu programa de desenvolvimento armas químicas, que estava parado desde 1992, tinha chegado ao seu termo com a destruição dos últimos stocks existentes. Apresentava um documento passado pela OPCW,(Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons), atestando a veracidade da afirmação. Esta OPCW é uma organização internacional sediada na Haia que representa os 192 países signatários do Tratado que proibiu as armas químicas, e que compreende 98% da população do Planeta. No seu site, https://www.opcw.org, pode ser encontrada abundante informação sobre a sua actividade, incluindo o seu envolvimento desde há poucos dias na investigação sobre a origem do produto que envenenou os Skripal. Segundo a OPCW, até hoje foram destruídas 72.304 toneladas métricas de agentes químicos, representando 96% dos stocks declarados, feitas 6.785 inspecções a 3.170 instalações ligadas à produção de armas químicas, bem como a outros 3.615 locais possuindo industrias com possibilidade de estarem envolvidas nessa actividade.
Muitas têm sido as teorias vindas a publico sobre quem foi responsável pela tentativa de assassinato dos Skripal, naquilo que é, afinal, a mais importante das questões. Umas são delirantes, outras não tanto.
Uma diz terem sido os Estados Unidos os autores através de uma hiper secreta organização por estar o Mr. Skripal a coligir um dossier que provava as ligações perigosas de Trump à máfia Russa.
Outra aponta para a Ucrânia por esta estar interessada em isolar a Rússia e em destruir a reputação de Putin, ganhando assim apoios no Ocidente para combater os separatistas pró-Russos.
Prodígio de imaginação é a que aponta o dedo aos adversários do Brexit: Com a ameaça Russa a Grã-Bretanha não poderia ousar ficar isolada dos aliados europeus, que em tão boa hora lhe deram incondicional apoio. Fim do Brexit portanto.
Mas, para mim, o prémio vai para as declarações feitas em Moscovo por uma familiar dos Skripal. Segundo ela a jovem Yulia estaria noiva de um jovem oficial dos Serviços Secretos que pertenceria a uma poderosa família da nomenclatura, família essa que veria com muito maus olhos ter no seu seio a filha de um traidor. Yulia, e não o Pai, seria assim o verdadeiro alvo do atentado.
Neste ambiente de informação e contra-informação, de intoxicação colectiva, sobressaem as palavras de Jeremy Corbyn no Parlamento, e que foram recebidas com vaias pela Direita:
“ Adiantar-mos-nos às provas que ainda são procuradas pela Policia, nesta atmosfera febril que tomou conta do Parlamento, não serve nem a Justiça nem a segurança nacional”
“Nos meus longos anos de Parlamento tenho visto como, durante crises internacionais, o pensamento sensato e racional pode ser submergido pela emoção, levando a que se tomem decisões apressadas”
“Informações falsas e relatórios manipulados levaram à calamidade da invasão do Iraque:”
Portanto regressemos à pergunta inicial: Cui bono ? A quem aproveita ?
À Rússia, que tem tropas da Nato estacionadas a menos de 100 quilómetros de S. Petersburgo e cujas forças armadas são 1/10 das da Aliança e cuja economia é do tamanho da Itália ? Acho que teremos de procurar melhor.