
Da Vida Breve
(De Brevitate Vitae ad Paulinum)
CARTA A PAULINO
II
*****
Lucius Annaeus Seneca
(4bc-65ad)
(...)É geralmente aceite que nenhuma actividade pode ser levada a cabo com sucesso por alguém que esteja num estado de perturbação, seja essa actividade o estudo da retórica ou os estudos liberais, porque uma mente assim não absorve nada em profundidade e rejeita tudo aquilo que se tentar meter-lhe dentro. Saber viver é a menor das preocupações para quem está assim e no entanto nada é mais difícil de aprender. Professores em todas as outras artes são fáceis de encontrar em todo o lado, na realidade até crianças foram capazes de as aprender, algumas mesmo capazes de ensinar. Mas aprender a viver leva uma vida inteira , e isto pode surpreender-te, mas leva também uma vida inteira o aprender a morrer. Muitos dos grandes homens puseram de lado todas as suas tarefas mundanas, renunciando a riquezas , negócios e prazeres e fizeram com que o objectivo até ao fim dos seus dias fosse unicamente o conseguirem saber em como viver. E no entanto muitos chegaram ao momento da morte confessando que não foram capazes de atingir esse conhecimento. Acredita-me, é sinal de um grande homem, de um que está acima dos erros humanos, não permitir que o seu tempo seja desperdiçado : É uma pessoa assim que terá uma vida o mais longa possível pelo simples facto de devotar a si própria todo o tempo que consiga dispor. Nenhum desse tempo é deixado vazio, nenhum é negligenciado, nenhum é deixado sob o controle alheio ; e sendo uma parcimoniosa guardiã do seu tempo essa pessoa nunca encontrará coisa que seja suficientemente valiosa que valha a pena aceitar em troca.
Portanto ela terá tempo para tudo; mas aqueles cujas vidas estão demasiadamente
expostas à devassa pública, inevitavelmente dele terão muito pouco.
Não deves pensar que essas pessoas não reconhecem às vezes aquilo que perdem. Na verdade pode-se ouvir o queixume de muitos daqueles cuja grande prosperidade se tornou num fardo, proferido no meio da multidão dos seus clientes, ou durante os pleitos na barra dos tribunais, clamando “Esta vida é impossível !”. Claro que é impossível. Todos aqueles que te chamam a si te afastam de ti. Quantos foram os dias que aquele acusado te roubou? Ou aquele candidato ? Ou aquela velha senhora destroçada pela morte dos seus descendentes ? Ou aquele que se finge muito doente só para revelar a cupidez dos seus herdeiros ? Ou aquele amigo influente que anda contigo não por amizade, mas por contigo se poder mostrar ?
Toma bem nota, digo-te eu, e faz as contas aos dias da tua vida e verás quão poucos ficaram para ti. Um homem que tenha conseguido um alto cargo anseia por poder dele sair, e repete constantemente : “Será que isto nunca mais acaba ?” Outro, tendo achado ser um grande feito ter conseguido que ficasse a seu cargo a organização dos Jogos, diz : “Quando será que me consigo ver livre disto ?” O advogado quando atravessa o Fórum é puxado por todos os lados por gente que quer a sua atenção exclama :” Será que as férias nunca mais vêm ?” Toda a gente se arrasta pela vida com um perturbador anseio pelo futuro e um imenso cansaço pelo presente. Mas aquele que gasta o seu tempo satisfazendo as suas necessidades, que organiza cada dia como se fosse o último, não anseia nem teme o dia seguinte. Que novos prazeres poderá trazer-lhe mais uma hora ? Porque ele fez tudo, tudo experimentou e apreciou plenamente cada momento passado. Quanto ao resto o destino pode dispor como lhe aprouver. A sua vida está segura e dela nada lhe podem tirar. Quando muito podem adicionar algo, mas será como alguém que após uma lauta refeição se sente satisfeito, mas não ao ponto de não poder aceitar comer mais um pouco.
Portanto não penses que lá por alguém ter o cabelo branco e rugas que teve uma vida longa : Provavelmente não viveu muito, apenas existiu muito. O que pensarias de um homem que parte para uma grande viagem mas cujo navio logo à saída do porto é apanhado por ventos e correntes contrários que fazem com que o barco ande às voltas ao sabor do temporal ? Dirias que ele fez uma longa viagem, ou que apenas andou aos trambolhões ?
As pessoas gostam de receber prebendas e recompensas pelas quais deram o seu trabalho ou usaram a sua influencia ou providenciaram a satisfação de necessidades de terceiros. Mas ninguém calcula quanto vale o tempo : Os homens usam-no liberalmente como se nada custasse. Mas quando a morte ameaça essas mesmas pessoas, vê-las-emos suplicando aos médicos e se temerem que o que se avizinha é a pena capital, então estarão preparadas para gastarem tudo o que têm para continuarem vivas. São assim tão inconsistentes nos seus sentimentos. Se cada um de nós pudesse conhecer o numero de anos que nos restam da mesma maneira que sabemos quantos já passaram, que desesperados ficariam aqueles que soubessem que muito poucos lhes faltam, e com que cuidados os usariam ! E no entanto seria fácil organizar esse numero, pequeno mas certo; o que há a fazer é preservar com cuidado o que fatalmente acabará num ponto para nós ainda desconhecido.
Nada pode trazer os anos passados de volta; ninguém poderá devolver-te a vida que já viveste. Ela continuará o rumo que terá tomado e não inverterá a marcha nem mudará de direcção. Não te causará alarme pela rapidez com que corre, porque desliza silenciosamente. Não crescerá nem por ordem do rei, nem do povo. Como será o final ? Tens estado distraído enquanto ela avança. Entretanto a morte chegará e não terás alternativa senão estares preparado para ela.
Haverá coisa mais idiota do que certas pessoas que se gabam da sua visão do futuro? Mantêm-se ocupados a melhorar as suas vidas; passam a vida a organizar a vida. Dirigem as suas energias para um ponto distante no tempo. Mas adiar é o maior desperdício que há: Tira-nos dia após dia, negando-nos o presente com a promessa do que há de vir. O grande obstáculo em viver é a expectativa que se prende com o amanhã e que perde o hoje. Queres dispor daquilo que depende somente do desconhecido, enquanto não ligas aquilo que podes realmente controlar. O que desejas? Que objectivo é esse pelo qual lutas? Todo o futuro é incerto: vive imediatamente. Ouve o grito do nosso maior poeta que como que inspirado pelo divino canta os inspiradores versos:
O mais belo dia da vida dos desgraçados
mortais,
Aqui é sempre o primeiro a fugir. (1)
“Porque hesitas ?”, pergunta ele, “Porque estás parado? Se não o agarras primeiro ele foge !”. E mesmo que o agarres ele foge na mesma!
(continua)
(1) Virgílio –
Geórgicas, Livro III (n.t.)