A Gazeta do Middlesex

Homenagem ao Soldado Maia

9/2/2021

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             A   GAZETA   DO   MIDDLESEX
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​                            HOMENAGEM AO SOLDADO MAIA



​​Dizia-se que o Maia era o único soldado Cigano do Exército Português. Não era certamente verdade, mas eu gostava de acreditar que sim e que o tinha no meu pelotão. Tínha-o conhecido no Verão de 65 quando vindos de todo o país  centenas de jovens começaram a concentrar-se no Regimento de Cavalaria 7, em Lisboa. Todos sabíamos ao que íamos e o que nos esperava : Primeiro formar um Batalhão e depois embarcar para a guerra do Ultramar, como então era conhecida.

À medida que a instrução prosseguia  lentamente crescia o espirito de grupo e tornavamo-nos pouco-a-pouco numa unidade militar. No meio dos outros lá andava o Maia sem nada que o tornasse  digno de nota. Cordato, respeitoso, exprimindo-se bem, não faltou muito que perante a minha curiosidade me contasse a sua história:

Um belo dia, não há muito tempo, andava ele vendendo bugigangas porta à porta quando entrou no Quartel-General do Exército na esperança de fazer algum negócio. Ele há horas do demónio, como se diz, e a dele foi abeirar-se de um Capitão oferecendo a sua mercadoria. Este, olhando-o de alto a baixo, disparou: Olha lá meu rapaz, já foste à tropa ? Conta o Maia que ficou completamente estupefacto com a pergunta e o melhor que conseguiu foi balbuciar :-Não senhor, eu sou Cigano…

O resultado advinha-se: Uma guia de marcha para fazer a recruta num Quartel qualquer. E ali estava o Maia com o seu ar permanentemente aturdido, de quem ainda não percebeu bem o que lhe tinha acontecido. E o que lhe aconteceu foi o destino de todos os jovens na altura: A mobilização para o Ultramar. Podia, é verdade, ter desertado em qualquer altura. Sem dificuldade teria desaparecido   no seio de um grupo nómada dos seus. Mas não, ali estava o Maia pronto para o que desse e viesse.

Logo quando o vi algo me chamou a atenção  : O Maia tinha uma medonha cicatriz que ía, pela nuca, de orelha a orelha. Perante o meu espanto não se fez rogado e contou-me o que tinha acontecido: Naquele dia fatídico , andava ele na sua venda, quando entrou num prédio no qual, como em muitos outros construídos em Lisboa nos anos 40/50, o vão das escadas tinha sido mais tarde aproveitado para instalar um elevador. Um gradeamento colocado por cima do corrimão garantia a segurança possível.  Não foi porém suficiente para o Maia porque, estando ele num dos patamares, ouviu vozes femininas no andar de baixo. Movido pela curiosidade, (pensou serem umas criaditas, confessou), pendurou-se no gradeamento espreitando para  ver quem falava. Esqueceu-se que, se os elevadores sobem também descem, e esse pequeno lapso ía fazendo com que fosse quase decapitado.

Mas, Dezembro chegado, a data para o embarque aproximava-se inexoravelmente. Primeiro havia que cumprir o ultimo acto da instrução, o chamado IAO, ou “Instrução de Aperfeiçoamento Operacional”, que consistia numa semana acampados, no nosso caso nas matas do Campo Militar de Stª Margarida. O Exército, na sua infinita sabedoria, tinha decidido que a melhor maneira de nos prepararmos para os calores africanos seria sujeitar-nos ao frio glacial daquelas noites. Mas, terminada a instrução, eis-nos preparados para a partida, tendo nós ficado  aboletados nas instalações do Regimento de Cavalaria do Campo.
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Mas primeiro, com o Natal à porta, foi concedida uma licença a todo o Batalhão que seria a derradeira despedida da familia. Antes, aos soldados, foi abonado o chamado subsidio de embarque: 500 Escudos em dinheiro, uma soma considerável para a época, superior ao que maioria jamais tinha possuído.
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O dinheiro na algibeira e a miragem de ir de salto para França não tentaram ninguém e no principio de Janeiro, quando finda a licença nos apresentámos, ninguém faltou à chamada, incluindo obviamente o nosso Maia. Na madrugada do dia 12 embarcámos num comboio especial que nos levaria até à Estação de Stª Apolónia. Daí ao cais foi um instante, e num instante o Vera Cruz ter-nos-ía engolido a todos, e todos, num instante, lá fomos barra fora.

 

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                    O 4º pelotão já a bordo do Vera Cruz.O Maia ao
​                                      centro sentado no chão


 Mueda foi o nosso primeiro destino e semanas depois íriamos render uma Companhia sediada em Muidumbe, uma meia duzia de casas delapidadas a cerca de cinquenta quilometros, pela chamada estrada da morte, da sede do Batalhão. Se simbolos existem da dureza dos combates que se travaram na Guerra, Mueda é um deles. Por ironia do destino, exactamente 50 anos antes, outros soldados Portugueses combateram naquelas terras do fim do Mundo. Em 1916 o inimigo eram os Alemães. Para nós foi a guerrilha. Mas a desesperante falta de meios foi igual, como igual o que foi pedido ao imenso espirito de sacrifício do Soldado Português. 


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O Maia era um de nós, sofreu o que nós sofremos, arriscou o que nós arriscámos e nunca por um instante foi sentido de forma diferente e,  tivesse ele morrido em combate, como tantos outros, teria sido por Portugal. Na foto acima podem-se ver dois jovens que exultantes de alegria apertam as mãos celebrando o facto de estarem vivos. Tínhamos feito uma coluna a Mueda e o nosso pelotão não tinha tido baixas. E se atentarem bem na foto não poderão destinguir o Cigano do Branco, o Alferes do Soldado. A força da imagem reside em ter captado aquele momento  que nos torna profundamente humanos: A celebração da vida, toda ela igual em valor e dignidade.

Para alguns, hoje, o Maia não merece ser tratado como Português, muito embora tenha arriscado a vida por Portugal. Para esses, aqueles que só têm para oferecer é um passado de videirinhos, vai o nosso desprezo.
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E assim termina esta singela homenagem ao Maia, um bravo Soldado Português. Para que conste e seja lembrado.
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Fernando Vouga
10/2/2021 10:47:53 am

Embora não fosse desordeiro, era um inadaptado. Mas concordo com esta sua bela peça literária. Abraço.

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