A GAZETA DO MIDDLESEX
HOMO DEUS
O próximo passo da evolução humana : de Homo Sapiens a Homo Deus. Da condição humana à divina. Uma viagem vertiginosa que Yuval Noah Harari faz connosco levando-nos pela mão. Para quem leu a sua primeira obra, Homo Sapiens, parecia impossível que Harari escrevesse algo que a ultrapassasse em brilhantismo intelectual, o que porém acaba de acontecer com Homo Deus.
Na sua visão do futuro o Autor pergunta-nos:
“A que deve a Humanidade ambicionar ? Ficaremos contentes com o que já conseguimos, tendo eliminado a pobreza e as doenças e atingindo o equilíbrio ecológico? Será esse talvez o caminho da razão, mas a Humanidade muito dificilmente o seguirá. Os Humanos raramente se satisfazem com o que já têm.
A mais comum reacção da mente Humana em face do que realizou não é satisfação, mas sim a ambição de conseguir mais. Os Humanos estão sempre à procura de algo melhor, maior, mais saboroso. No momento em que a Humanidade possuir extraordinários novos poderes, quando a ameaça da guerra, da fome, e da doença finalmente desaparecer, o que faremos connosco próprios? O que farão os cientistas, os investidores, os banqueiros, os Presidentes, no seu dia-a-dia? Escrever poesia?
O sucesso promove a ambição, e o ter atingido os presentes objectivos empurra a Humanidade para outros ainda mais elevados. Com níveis nunca vistos de prosperidade, saúde e harmonia, e tendo em conta o nosso passado e os valores do presente, os próximos objectivos serão muito provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade. Tendo reduzido a mortalidade devida à fome, doença e violência, o que queremos então é vencer a velhice e a própria morte. Tendo salvo a Humanidade da mais abjecta miséria, o que quereremos é conseguir que seja completamente feliz. Tendo feito a Humanidade elevar-se acima das lutas animalescas pela sobrevivência, quereremos ir mais além e fazer dos humanos Deuses, transformando o Homo Sapiens em Homo Deus.”
Se Homo Deus é um tour de force intelectual de uma dimensão dificil de apreciar, a sua leitura representa um desafio para quem lê, um diálogo constante com o Autor e sobretudo um risco de o leitor ver abaladas as suas mais profundas convicções.
Neste mapa para o futuro, por muito distante que seja, tudo é reduzido ao material, à dimensão física:
“… Na realidade os Humanos não morrem porque uma sinistra figura de negro lhes toca no ombro avisando que chegou a sua hora, ou porque assim foi a vontade de Deus, ou porque a mortalidade faz parte de um vasto plano cósmico. Os Humanos morrem sempre devido a um problema técnico. O coração pára. As artérias estão entupidas com matéria gorda. Células cancerosas espalham-se no fígado. Bactérias multiplicam-se nos pulmões. E qual é a causa destes problemas técnicos? Outros problemas técnicos. Não há nada de metafísico nisto. Tudo se reduz a problemas técnicos e para cada um deles existe uma solução que é técnica também...”
A leitura de Homo Deus lembra-me um outro livro publicado há já muitos anos de autoria de C.S.Lewis, aquele que escreveu também Narnia. No seu Mere Christianity, cuja tradução para Português infelizmente não encontro, é feita a apologética cristã de uma forma tão intelectualmente brilhante que os defensores do Ateísmo se viram reduzidos à acusação de que o maior defeito da obra era...estar demasiadamente bem escrita. Será que a Homo Deus está reservada a mesma sorte ?
Nesse mundo distante, frio e hostil que Harari proclama como sendo o futuro que nos espera, e em que os Humanos serão Deuses, estranhamente não há lugar para Ele.
Eu, que nasci fadado para não ter certezas, revejo-me nas palavras de Camus: “Não tenho a certeza se Deus existe, mas decidi acreditar que sim.” E, permito-me acrescentar: E viver de acordo.
Nós Humanos, essas estranhas criaturas que vivem na Natureza mas que sofrem da capacidade de reflectir sobre o que a transcende, e que estamos tão habituados a inquirir-nos sobre o significado do Universo, encontramos na religião com a sua regra de incondicional aceitação um sentido da vida e uma estabilidade emocional que penso não existirá nesse admirável mundo novo que Harari anuncia.
A ciência, em que Harari põe tanta fé, nega a existência da alma e a neurociencia não encontra na leitura das ondas cerebrais qualquer espaço para ela. Mas o que fica é um sentimento de ausência e, se não encontramos respostas na confusão que nos rodeia, então muitos acham preferível viver dentro da religião do que fora dela.
Por vezes, quando conseguimos abafar o ruído e paramos em completo silencio, conseguimos sentir essa ressonante ausência e ser atraídos por ela.
É disso que fala a poesia de Walt Whitman e, quem sabe, numa noite estrelada sozinhos na praia também a possam vir a sentir.