A GAZETA DO MIDDLESEX
O CANÁRIO
Sócrates, e as circunstancias da sua prisão às ordens de um juiz, lembra irresistivelmente esse passado, fazendo agora o antigo Primeiro-Ministro o papel de canário no fundo da mina, o que nos permite avaliar pelo que lhe aconteceu se a maneira como a Justiça se comportou foi limpa, ou se esteve pelo contrário desde o inicio inquinada por miasmas mortais.
Pensará quem lê que nada disto diz respeito ao cidadão comum, e que só é possível acontecer a um político sobre o qual foram lançadas no passado várias suspeitas sobre a sua honradez.
Mas, reflectindo um pouco, parece inquestionável que a prisão de alguém que foi durante uma dezena de anos Primeiro-Ministro de Portugal deveria ter sido planeada com especial cuidado e pelas repercussões internas e externas que iria causar deveria ter sido feita com discrição e necessário pudor. Dado o melindre, havia que evitar o sensacionalismo e a especulação: Dignidade e reserva, era o que em suma se exigiria das autoridades se quisessem demonstrar sentido de Estado e estar ao serviço de uma Justiça respeitada e respeitadora.
O que aconteceu foi bem diferente como sabem: Em vez dessa dignidade e reserva aconteceu um verdadeiro espectáculo de vaudeville mediático, uma ignara demonstração de incivilidade, atraso e ignorância.
Perplexidade, foi o que causou saber-se que o individuo a levar para os calabouços não fugia do país, mas voluntariamente a ele regressava sabendo de antemão o que o esperava, o que não obstou a que tenha sido evocado o inefável fundamento do perigo de fuga para o manter preso.
Mas mais significativo foi o saber-se que horas antes de partir para Portugal José Sócrates tinha enviado um email ao Ministério Público oferecendo-se para se apresentar voluntariamente para prestar declarações. Mas como não houve resposta, foi o seu próprio advogado que tentou saber junto a um Procurador o que se passava. Só passados quatro dias após consumada a prisão é que foi admitido ter sido recebido esse email, inexplicável atraso que teve como feliz consequência ter sido evitada uma enorme frustração ao Juiz Carlos Alexandre, o qual por falta de fundamento legal poderia ter sido impedido nos últimos instantes de ter Sócrates debaixo do seu polegar. Aliás este Magistrado, ou é tão tosco intelectualmente que não sabe avaliar as consequências dos seus actos, ou então está tão ébrio de poder que estas lhe são indiferentes.
Na imprensa segue uma campanha incessante de ódio e de calunia, cuja razão se torna clara se atentarmos a quem pertencem os pasquins.
No Expresso, um jornal tido como “de referencia”, como se em Portugal se soubesse o que isso era, o Director num editorial declarava não ter duvidas ser Sócrates culpado pelos crimes de que era acusado. É verdade que esse semanário tem uma longa tradição de ter Directores que não sabem nem pensar nem escrever, facto que tentam esconder atrás de uma descomunal empáfia.
Recentemente esse semanário procurou entrevistar Sócrates na cadeia, o que foi proibido pelas autoridades. Declarando-se paladino da liberdade de informação, o Expresso afirmou ir recorrer da decisão, mas entretanto publicou uma lista com 81 perguntas a ser respondidas pelo detido, perguntas que não ajudam a conhecer o que realmente importa e que não passam de 81 verdadeiras obscenidades, mal disfarçadas sob o argumento do dever de informar o publico. O descaro chegou ao ponto de, se não é abertamente perguntado a Sócrates se tem relações intimas com o amigo, isso não deixa de ser clara e desenvergonhadamente insinuado. A baixeza moral, a hipocrisia e o cinismo, raramente terão atingido níveis tão infames.
A Sócrates resta aceitar a completa devassa da sua vida privada e responder, ou recusar-se a colaborar na repelente manobra do Expresso e ser por isso acusado de ter a consciência pesada e de esconder a verdade, pois a ele não será reconhecido a direito a negar-se a um qualquer “striptease”.
E portanto caro leitor, se um dia tiver de atravessar o longo e sombrio túnel da justiça portuguesa, lembre-se da história do canário no fundo da mina e do seu fim. E se julga que nada lhe irá acontecer, protegido como está pelo seu viver discreto, pela placidez da sua vida, o que pensa que faz com que seja incólume ao abuso da justiça ou à sua negação, então é melhor que pense duas vezes e que se prepare para o pior.