A Gazeta do Middlesex

O Zé Caçador

16/8/2014

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                                     O Zé Caçador




O que se pode oferecer a quem já tem tudo ? Mais do mesmo, é a resposta. Mas se esse alguém é  banqueiro ? A solução é óbvia: Pois mais dinheiro ainda.

Isto vem a propósito de se ter sabido que um quase desconhecido, de seu nome José Guilherme, num gesto de principesca largesse, ofereceu ao banqueiro Ricardo Salgado a bagatela de 14 milhões de dólares.

Tal como na Astronomia, onde foi necessário criar os parsecs e depois os megaparsecs, que são unidades para medir distancias...astronómicas, em Portugal foi inventada uma nova unidade monetária chamada Pipa. Não conheço a tabela de equivalências mas acho que, na modéstia do meu viver, essa prenda a Salgado valerá o equivalente senão a uma Pipa,  pelo menos a meia Pipa de massa.

Mas o que sei é que, estando eu ávido por noticias devido aos últimos acontecimentos, não tenho tido outro remédio senão gastar dinheiro na assinatura diária de jornais portugueses  e assim pude conhecer a existência desse awesome José Guilherme.

Procurei no Oxford Dictionary sinónimos que me ajudassem a traduzir o adjectivo para português, e o que encontrei foi daunting, impressing, amazing, incredible, astonishing, e como exemplo da palavra usada em contexto :“The awesome power of the atomic bomb”.

Será exagerado comparar o personagem à bomba atómica senão talvez pelo impacto que a sua fortuna , que vale certamente várias Pipas de massa, teve numa sociedade pelintra como a portuguesa, mas o certo é que o seu gesto lhe garantiu lugar na História Pátria, sendo necessário recuar muito no tempo para se encontrar algo que se assemelhe:

Quando Catarina de Bragança cuja memória aqui ainda perdura, e não só por se beber chá, casou com Carlos II levou como prenda de noivado as cidades de Tanger e de Bombaim.

Muito antes, D. Manuel I teve um gesto que será lembrado ad aeternum ao oferecer em 1514 ao Papa Leão X um elefante branco chamado Hanno, o qual causou na Europa de então uma enorme sensação.

Poderão ambos os casos ser comparados à oferta de José Guilherme ? Acho que não, primeiro porque estes eram de assuntos de Estado, e principalmente porque são em generosidade pura muito inferiores à deste benfeitor.

No caso de Catarina, Tanger era uma verdadeira maçada que só dava despesa e Bombaim uma constante preocupação, sendo ambas as cidades um enorme fardo para o erário público, e foi com alivio geral que foram vistas sair pela Barra do Tejo fora .

Já para D. Manuel I, o elefante branco era... um elefante branco, completamente inútil, e foi considerado um achado envia-lo de presente ao Papa, o que custou ao Pontífice umas largas centenas de ducados por ano para manter o bicho, o que seria na época outra Pipa de massa.

Já José Guilherme foi único no seu desprendimento, no desinteresse com que deixou cair na malga de Salgado os tais milhões, o que não deixa de ser uma lição do destino quando se vê  alguém conhecido por Zé Construtor a  dar uns trocados ao banqueiro e não o contrário.

A este ultimo conhece-se o seu nascimento num berço de ouro mas o de Zé Grande, como também é chamado, foi muito provavelmente mais do género bíblico, o que não deslustra muito pelo contrário.

Mas o que para mim é sempre motivo de admiração é o facto de, por muito humilde que seja o começo, uma vez feita fortuna os felizardos rapidamente adquirem com camaleonico mimetismo os gostos e tiques de old money, como se seguissem um check-list do qual consta obrigatoriamente a caça e, não fosse para alguns a bola ser demasiado caprichosa para entrar no buraco, também o golfe, tudo entremeado com viagens a Nova Iorque para um lustro de pseudo cosmopolitismo, e tendo felizmente ficado para trás os tempos do bagacinho, não se bebe outra coisa que não seja single malt whisky com o mínimo de 18 anos, if you please.

Um dos jornais sempre solicito, publica uma ampla reportagem onde se pode ver o nosso Zé na sua esplêndida herdade do Alentejo onde recebe la crème de la crème , o Who's Who lusitano, os Espíritos Santos (et pour cause...), Sousa Cintra, Cavaco, Dias Loureiro et al. e onde se realizam memoráveis caçadas após as quais os convidados são levados a almoçar num restaurante do sitio, o que é uma ideia simpática porque evita as discussões sobre quem tem depois  lavar a louça.

Numa foto pode-se ver o orgulhoso proprietário empunhando a espingarda: O boné parece ser da Barbour, o que é um bom sinal, já a arma é decepcionante e não sei como se deixa fotografar com outra coisa que não seja uma Purdey ou, vá lá, uma Holland & Holland, coisas para custarem apenas umas 60.000 libras cada, não indo às mais caras, uma bagatela portanto para ele. Mas demos-lhe tempo que ele aprende e vai lá.

Aqui as classes possidentes não têm nenhum Alentejo para caçar, o país é demasiado populoso para isso. O que mais se aproxima são as Highlands da Escócia onde se caça a galinhola mas é longe, faz frio e chove, nada prático portanto.

Cá para baixo também não se atira às perdizes: Talvez pelo clima, talvez por serem consideradas aves demasiadamente rústicas, talvez pelos gostos serem mais requintados, o que se caça é o faisão.

Mas o desporto favorito da upper class é muito protegido pelo governo conservador e ainda agora foi levantada a questão do custo das licenças de caça cujo preço de 50 libras se mantém inalterado desde 2001. A Policia, que é a entidade que as emite , calcula porém que o custo actual é de 196 libras, e quando o pretendia actualizar veio a mão protectora do Primeiro-Ministro impedindo o que considerou ser um esbulho aos seus pares de classe social. O Country Land and Business Association, que representa os caçadores do Partido Conservador, considerou injusto que os seus membros tivessem de pagar o custo real dessas licenças, o que porém acontece com os Passaportes e Cartas de Condução. Temos assim que em consequência os contribuintes subsidiam o desporto dos ultra-ricos com 17 milhões de libras/ano.

Mas coisas ainda mais estranhas se passam:

Os faisões são criados em aviários e são considerados animais para consumo humano, (livestock), e por isso essa actividade beneficia de vários incentivos e benefícios fiscais e redução do IVA. Quando porém são largados nas coutadas, instantaneamente passam a ser considerados animais selvagens, de outro modo não podiam ser abatidos a tiro. No final da época os que escapam são apanhados com redes e voltam aos aviários e à sua condição de animais para consumo, até ao próximo ano quando voltam a ser largados e sofrem nova metamorfose legal. Ora isto acho que nem o Zé Grande consegue na sua herdade do Alentejo !




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2 Comments
Fernando Vouga link
17/8/2014 12:56:59 am

Belíssimo texto, algo queiroziano e cheio de fino humor.
Parabéns

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Alcina Mila
22/8/2014 07:44:35 pm

As coisas que nós aprendemos contigo!! Das licenças já sabia, porque foi cá noticiado, mas essa dos faisões é demais......

Também, tal como o Fernando Vouga, acho o texto fantástico.

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