A Gazeta do Middlesex

Pecados Cardeais

1/10/2014

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                                                           George Monbiot

                                       PECADOS CARDEAIS


“Quando dou comida aos pobres chamam-me santo. Quando pergunto qual a razão porque eles são pobres chamam-me comunista.” Declarou um dia o Arcebispo brasileiro Dom Hélder Câmara. Esta sua expressão desvenda uma das grandes divisões existentes no seio da Igreja Católica e a falta de conteúdo da declaração do Papa Francisco em como está do lado dos pobres.

As pessoas mais corajosas que jamais conheci foram Sacerdotes católicos. Quando trabalhei, primeiro na Papua Nova-Guiné (1) e depois no Brasil, encontrei homens preparados repetidamente para sacrificar a vida pelos seus semelhantes. Ao entrar pela primeira vez no mosteiro de Bacabal no Estado brasileiro do Maranhão, o Padre que me abriu a porta pensou que eu chegara para mata-lo. Nessa mesma manhã tinha recebido a ultima de uma serie de ameaças de morte por parte do grupo dos rancheiros locais e no entanto não hesitou em tranquilamente deixar-me entrar.

Dentro encontrei grupos de camponeses aterrorizados, muitos com ferimentos feitos por coronhadas e cujos pulsos tinham ainda as marcas das cordas que os tinham amarrado. Estes eram apenas alguns dos milhares que os Sacerdotes tentavam proteger dos latifundiários, políticos e policias locais que queimavam as suas casas, expulsavam das suas terras e que torturavam e matavam aqueles que ousavam resistir, e cuja cuja impunidade era garantida por um sistema judicial corrupto.

Tive uma pálida ideia do medo constante em que viviam esses Padres quando fui eu próprio espancado e quase morto pela Policia Militar(2). Mas eu pude seguir o meu caminho enquanto eles ficavam para defender aqueles para quem o conservar as suas terras era uma questão de vida ou de morte: A expulsão significava mal nutrição, doença e morte violenta nos bairros miseráveis para onde eram levados a viver.

Esses sacerdotes pertenciam a um movimento que se tinha espalhado pela América Latina após a publicação de “A Teologia da Libertação” em 1971 e cujo autor era Gustavo Gutierrez. Os Teólogos da Libertação não só se colocavam entre os pobres e os seus verdugos, como também mobilizavam os seus rebanhos para se oporem a que lhes fossem tiradas as terras, para conhecerem melhor os seus direitos e para que entendessem que a sua luta era parte de uma longa história de resistência que começou com a fuga do povo de Israel do Egipto.

Quando me juntei ao movimento em 1989, sete Padres brasileiros já tinham sido mortos e Óscar Romero, o Arcebispo de El Salvador, tinha sido assassinado; muitos outros em todo o Continente tinham sido presos, torturados e mortos.

Mas os ditadores, latifundiários, policias e pistoleiros não eram os seus únicos inimigos. Sete anos depois de ter saído de Bacabal voltei para encontrar o Sacerdote que então me tinha aberto a porta do convento(3). Porém agora não podia falar comigo. Tinha sido silenciado e era um dos que tinham sido objecto da extensa purga feita pela Igreja para se ver livre das vozes incomodas no seu seio. Os “Leões de Deus” eram conduzidos por asnos. Os camponeses tinham perdido os seus protectores.

O assalto tinha começado em 1984 com a publicação pela Congregação para a Doutrina da Fé, (anteriormente conhecida sob o nome de Inquisição), de um documento de autoria do seu chefe: Joseph Ratzinger, que mais tarde seria o Papa Bento. Esse documento denunciava “ os desvios e os riscos de desvios” da Teologia da Libertação. Nele o seu autor não negava o que apelidou de “confisco da maior parte da riqueza por parte de uma oligarquia de proprietários... ditadores militares que espezinhavam os mais elementares direitos humanos (e) as práticas selvagens do capital estrangeiro” na América Latina. Mas insistia que “É apenas de Deus que devemos esperar salvação e cura para os nossos males. Só Ele, e não o homem, tem poder para remediar situações de grande sofrimento”.

Segundo a Doutrina, o único meio ao alcance dos Sacerdotes para alcançar a justiça para as vitimas era conseguirem a conversão dos ditadores e dos assassinos a soldo, de modo que viessem a amar o seu semelhante e que se controlassem a si próprios.

“É apenas através de um apelo ao 'potencial da moral' do individuo e à sua constante necessidade de conversão espiritual que a mudança social pode ser conseguida...”(5). Certamente que os generais e os seus esquadrões da morte devem ter achado imensa graça a isto.

Mas pelo menos Ratzinger tinha uma possível linha de defesa, pois ao viver enclausurado no Vaticano não teria bem a noção do mal que causava. Durante a inquirição em Roma de um dos mais destacados libertacionistas, o Padre Leonardo Boff, o Arcebispo de S. Paulo convidou Ratzinger a visitar o Brasil para ver com os seus próprios olhos a situação dos pobres. Mas ele recusou e como resposta retirou ao Arcebispo grande parte da sua diocese(6). Ele escolheu ser voluntariamente ignorante. Mas o actual Papa nem esta desculpa pode apresentar.

O Papa Francisco sabia bem o que a opressão e a pobreza eram: Várias vezes por ano celebrou missa num dos bairros mais miseráveis de Buenos Aires (7). No entanto como chefe dos Jesuítas argentinos denunciou a Teologia da Libertação e deu ordem aos Padres que se dedicavam a mobilizar e defender os pobres para abandonarem os bairros de lata, pondo fim à sua actividade política (8,9,10,11).

Agora Francisco defende que quer uma Igreja “pobre e para os pobres”(12), mas significará isto dar apenas comida aos pobres ou será perguntar também o porquê de serem eles pobres ?

As ditaduras da América Latina prosseguiram uma guerra contra os sem-terra, guerra essa que continuou em muitos sítios após o colapso desses regimes. Diferentes facções da Igreja Católica tomaram posições opostas nesse conflito.

Quaisquer que sejam as actuais declarações de intenção por parte daqueles que atacaram e suprimiram a Teologia da Libertação, eles foram na prática aliados dos tiranos, dos expropriadores de terras, dos donos dos servos da Divida, dos esquadrões da morte. Por muito ostensiva que seja hoje a sua humildade o Papa Francisco esteve do lado errado da História.

                                                                                                   George Monbiot

                                                                                               (www.monbiot.com)




Artigo publicado no Jornal “The Guardian”

(www.guardian.co.uk)




Referencias:

1. George Monbiot, 1989. Poisoned Arrows: an investigative journey through Indonesia. Michael Joseph, London.

2. The story is told in full in George Monbiot, 1991. Amazon Watershed: the new environmental investigation. Michael Joseph, London.

3. http://www.monbiot.com/1996/07/09/hunting-the-beast/

4. Joseph, Cardinal Ratzinger, 1984. Instruction on Certain Aspects of the “Theology of Liberation” Congregation for the Doctrine of the Faith
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_en.html

5. Joseph, Cardinal Ratzinger, ibidem.

6. Jan Rocha, August 2004 . Justice vs Vatican. New Internationalist magazine. http://newint.org/features/2004/08/01/social-justice/

7. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/15/pope-francis-joy-humility-unbending

8. http://www.democracynow.org/2013/3/14/a_social_conservative_pope_francis_led

9. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/17/pope-francis-first-sunday-prayer

10. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/15/pope-francis-joy-humility-unbending

11. http://ncronline.org/blogs/ncr-today/papabile-day-men-who-could-be-pope-13

12. http://www.guardian.co.uk/world/2013/mar/16/pope-francis-church-poverty


















1 Comment
Fernando Vouga link
2/10/2014 06:54:53 am

Caríssimo
Bem lá no fundo, andamos todos à procura de um D. Sebastião. O desespero é tal que, sempre que se destaca alguém, ficamos cheios de esperança. Só que depois...

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