A GAZETA DO MIDDLESEX
PENSAR I
Com mais de três milhões, ou 5% da população total, o Reino Unido é com a França um dos países com uma das maiores comunidades Muçulmanas da Europa. Muitos deles são, segundo o Primeiro-Ministro Cameron, “extremistas Muçulmanos não violentos” ou seja aqueles que não defendendo actos desse tipo, apoiam no entanto incondicionalmente a aplicação da Sharia nos países onde são maioritários, incluindo, por exemplo, a pena de morte para os apóstatas e para os que “ofendem” o Profeta, e a lapidação como castigo para as mulheres adúlteras.
Shahidha Bari, escritora e professora na Queen's Mary University of London, escreve este artigo publicado na revista New Statesman, onde reflecte sobre os terríveis problemas que a sociedade Britânica enfrenta. Nunca como agora foi necessário pensar calma e racionalmente, ou como alguém disse, “ pensar antes de pensar”, se se quiser evitar uma catástrofe de inominaveis proporções.
“Todo o curso da História foi afectado por este acontecimento,” escreveu o filósofo francês Jean Baudrillard, após os ataques de 9/11, “mas também o foram as condições para uma analise... Temos de dar tempo ao tempo.”
Mas menos de uma semana passada sobre os ataques ao Charlie Hebdo e ao supermercado Hyper Cacher que causaram 17 mortos, e sobre os desfiles em França de três milhões de pessoas numa demonstração de unidade, as analises começaram a ser feitas, sem descanso e sem fim, com argumentos e contra-argumentos, em inúmeras mensagens no Twitter, em títulos dos jornais, enchendo todos os tipos de media globais .
O drama da passada semana desenrolou-se numa espécie de velocidade hiper-real que é impossível de travar e na qual é impossível pensar com clareza. Esta acumulação de analises feitas em grande velocidade indica como desesperadamente procuramos ver claramente em tempos de crise, e em como é difícil consegui-lo nessas condições.
O terreno do debate tem mudado constantemente, (da defesa intransigente da liberdade de expressão à discussão sobre os méritos do #JesuisCharlie, em como traçar as diferenças entre Islão e Islamismo e em como repudiar Rupert Murdoch(1)), enquanto que os nomes das vitimas e as vozes de suas famílias continuam sendo uma pungente chamada de atenção para quanto impreparados estamos para entender esses acontecimentos.
Esses nomes e essas vozes alertam-nos para as falhas das nossas interpretações as quais, apesar das nossas boas intenções, ou vão mais além do que deviam ou não avançam suficientemente, mas sendo sempre feitas apressadamente. E contudo continuamos sem nos determos, mesmo com o perfeito conhecimento do pequeno que é o nosso entendimento, o qual não poderá jamais mitigar, justificar, explicar ou redimir a morte de 17 pessoas. Se alguma verdade podemos oferecer é aquela que afirma a impossibilidade de existir causa que mereça o assassinato cruel dessas vitimas- nem o Islão nem a liberdade de expressão. Além dessa absoluta verdade mais nenhuma existe a que nos possamos agarrar.
Vale apena reflectir agora que ao querermos freneticamente proferir julgamentos morais definitivos, estamos a fazer colidir a clareza de raciocínio contra a complexidade da situação. Tantas são as declarações feitas em nome do Charlie Hebdo e das vitimas do massacre do Hyper Cache, que apesar da indescritível tragédia dessas mortes, essas declarações devem ser encaradas com prudência e mesmo algumas contestadas por ignorarem a complexa realidade. Não há, dessa complexidade, satisfação a retirar, mas ela não pode em caso algum ser ignorada.
Mesmo a declaração de François Hollande denunciando o massacre de Charlie Hebdo como sendo “bárbaro” deve ser questionada. A violência é barbara : Ignorante, brutal e estúpida. Mas a palavra provém do Grego e designava os bárbaros, os estrangeiros às portas da cidade. O nome deriva dos sons incompreensíveis de uma língua desconhecida, que para os ouvidos gregos soava como um ruído sem sentido.
Se os assassinos eram certamente bárbaros, eles não eram contudo estrangeiros às portas da cidade; eles eram cidadãos Franceses de língua francesa, tal como os carrascos de Lee Rigby(2) eram vergonhosamente Britânicos.
Chamar a atenção para estas circunstancias não significa simpatizar com os assassinos, nem mesmo tentar “perceber as suas origens”, mas sim resistir ao instinto que nos leva a querermos nos afastar do horror existente entre nós: ignorando a necessidade de nos envolvermos quando precisamente o que desejávamos era a distancia. O terror criado dentro de fronteiras confunde. Sabemos como rejeitar a retórica do “nós contra eles” prevalecente tanto nas democracias liberais como entre os seus inimigos islâmicos. Sabemos o redutora que é essa atitude, mas o desafio é maior do que o repudio dessa linguagem, implica recrearmos-nos, (tanto na Grã-Bretanha como em França), como um “nós” que inclui “eles”. Isto será difícil e por vezes mesmo detestável, especialmente em França onde as fronteiras entre a esfera religiosa e a vida cívica estão tão firmemente traçadas. No entanto não o tentar seria ceder à demagogia de Farage(3)com as suas ameaças da “quinta coluna.” Se, como Murdoch(1) afirmou, existe um “cancro jihadista” ameaçando o Ocidente, então ela diz respeito não só os Muçulmanos mas também todos os membros das sociedades onde pretende exercer a sua violência.
As questões que presentemente a Europa enfrenta na suas relações com o Islão são em como conviver pacificamente com contradições e em como encontrar solidariedade entre uma multitude de forças irreconciliáveis. Nada é fácil ou simples numa Europa assim. É um lugar onde ataques como os da semana passada devem ser entendidos simultaneamente como uma ataque ao laicismo e aos Muçulmanos comuns. Uma das complexidades que devemos enfrentar é a das várias e diferentes identidades Muçulmanas. Nem todos os Muçulmanos estariam de acordo com o carácter “ofensivo” das imagens do Profeta e muitos considerariam essas imagens muito menos preocupantes do que o racismo ou a privação material.
Se aceitarmos a possibilidade da existência de contradições e complexidades, poderíamos então defender o absoluto direito de livre expressão sem a ameaça de represálias violentas, ao mesmo tempo que assinalamos que a história desse direito é tudo menos uniforme, que nunca é realmente “livre”, nem mesmo em França, e que ele deve ser entendido no seu contexto social e histórico.
É possível ter orgulho numa sociedade que privilegia a liberdade mas que ao mesmo tempo recusa funcionar sob a ilusão que a livre expressão está sempre ao serviço do bem, quando tantas vezes essa liberdade foi usada para humilhar grupos diferentes de pessoas, vistas como não não sendo merecedoras de direitos de completa cidadania.
È inteiramente possível defender as liberdades que garantem a livre expressão ao mesmo tempo que se defendem as que protejam a liberdade religiosa. Isto não é uma fantasia sobre uma Europa futura, - é a difícil, imperfeita, contraditória, mas decente e funcional Europa em que vivemos hoje. Há que repeti-lo constantemente.
(1)- Rupert Murdoch – Magnata dos Media. Foi um dos homens mais poderosos da Grã-Bretanha, proprietário de vários jornais entre os quais o News of the World, entretanto encerrado devido ao escândalo das escutas telefónicas que envolveu muitos dos seus jornalistas. Detém ainda a televisão por satélite Sky, e na América a FoxNews e o Wall Street Journal.
Na sequencia dos ataques em Paris publicou um Tweet, @rupert murdoch, que provocou grande celeuma :” Maybe most Moslems peaceful but until they recognize and destroy their jihadist cancer they must be held responsible.” (n.t.)
(2)- Lee Rigby – Soldado Britânico morto e decapitado em plena via publica em Woolchich, sudeste de Londres, em Maio de 2013, por dois Muçulmanos de ascendência Nigeriana.(n.t.)
(3)- Neil Farage- Líder do partido Ukip que declarou serem as populações muçulmanas da Europa uma espécie de “quinta coluna” determinada a destruir por dentro a civilização ocidental.(n.t.)